Onde estão os “malucos”? Interrogado nesta semana como réu no STF (Supremo Tribunal Federal), Jair Bolsonaro chamou de “malucos” seus apoiadores que ficaram acampados diante de quartéis pedindo golpe. “Tem sempre uns malucos ali que ficam com aquela ideia, de AI-5, intervenção militar, que as Forças Armadas, os chefes militares jamais iam embarcar nessa.”
A Folha corretamente publicou uma checagem e mostrou que o ex-presidente “incentivou a criação e a manutenção dos acampamentos golpistas (…) de onde saíram os manifestantes dos ataques do 8 de Janeiro”. Mas faltou ir atrás dos pobres-diabos. Até outro dia, o bolsonarismo os tratava, em especial os que foram presos depois da “Festa da Selma”, como vítimas.
A pena de 14 anos para a cabeleireira Débora Rodrigues dos Santos foi o estopim de uma outra revolta contra o que se considerava condenação desproporcional e perseguição. O que será que ela e as outras centenas de presos e investigados pensam da nova classificação que receberam de Bolsonaro? Silêncio.
O jornal mostrou que os “malucos” não eram do interesse da narrativa da direita. “A direita (…) não respondeu massivamente à menção do ex-presidente de que apoiadores em acampamentos após as eleições de 2022 seriam ‘malucos’, aponta levantamento da Palver sobre a movimentação do tema nas redes.”
Foi o segundo escanteio recente dos “malucos”, que já haviam sido rifados quando o bolsonarismo abandonou a pauta de anistia que não serviria aos cabeças da tentativa de golpe.
Mas os veículos de comunicação também deixaram esses personagens para lá: não se soube mais deles. É um erro, já que havia interesse em conhecer o que pensam “Débora do Batom” e tantos outros patriotas úteis ao golpismo em outros momentos.
O vaivém narrativo não tem nada de bobo. Se já foram tomados por “petistas infiltrados“, os golpistas também tiveram seu momento de “velhinhas com Bíblia na mão”, ideia rechaçada por Alexandre de Moraes. Agora, são “malucos”. Sem rosto nem nomes próprios, são tratados como gente quando convém e viram paisagem quando se tornam inconvenientes. Caberia ao jornalismo mostrar que a coisa não é bem assim.
BELÉM X PALAVRÃO
No início do mês, uma reportagem sobre saneamento em Belém deixou alguns moradores da cidade incomodados. A Folha mostrou que as obras de coleta de esgoto da COP30 beneficiariam só 3% da população de Belém, ou 40 mil pessoas, contra 500 mil nas propagandas oficiais.
A reportagem visitou obras de 13 canais e falou com moradores de comunidades pobres. Um deles disse: “A nossa hora aqui nunca chega”. “O rio que corre entre as casas é um esgoto a céu aberto. O odor é sentido ao longo de quadras. Naquela região, o que chega da COP30 é terra retirada de outras obras”, descrevia o texto.
Mas foi o vídeo da reportagem que gerou mais incômodo. A situação das comunidades no canal São Joaquim era descrita como de precariedade profunda. “As casas, as ruas, são empilhadas sobre áreas de várzeas. As pessoas vivem sobre os seus restos. Vivem, com o perdão do termo, literalmente sobre a merda”, dizia a reportagem, usando o palavrão.
Um leitor considerou “um espetáculo de escárnio, onde o suposto cheiro da cidade vira pretexto para a velha retórica de nojo e superioridade colonial”. “O que fede é o ranço de uma Redação que ainda enxerga o Brasil pelo buraco da fechadura de Higienópolis.”
Um vídeo da jornalista Layse Santos, diretora da agência de comunicação EKO, circulou com críticas à Folha. “Não é um ‘não’ à reportagem, é um ‘sim’ à necessidade de olhar mais fundo, com mais cuidado e contexto para a nossa realidade. Belém não precisa e nem deve ser protegida da crítica. Mas, como jornalista há mais de 30 anos cobrindo região amazônica, entendo que a linha tênue entre o que é denúncia e o que é preconceito foi cruzada”, declara Layse sobre a manifestação.
Para ela, faltam “contextualização histórica das desigualdades” e “um olhar contínuo, comprometido, e não apenas eventual, da ‘grande imprensa’ sobre a Amazônia”. Layse vê na cobertura a tentativa de comprovar “tese de que Belém não foi uma boa escolha para ser a sede da COP30”. “[O palavrão] reforça a sensação de sermos, mais uma vez, ‘exóticos’ e ‘objeto de espanto’ e não sujeitos de mudança.”
“Eu poderia usar eufemismo, mas não valeria a pena”, afirma a repórter especial da Folha Alexa Salomão, autora do material. Para ela, nada se compara ao abandono das populações retratadas. “Fiquei preocupada com os moradores, de eles terem se sentido ofendidos”, afirma a repórter. “Peço desculpa aos moradores, mas só para eles. Porque não quero ser desrespeitosa como é o poder público. O estado tem obrigação de zelar pelo saneamento, mas eles estão abandonados.”
Na semana seguinte a Folha dedicou dois textos a declarações do governador do Pará, Helder Barbalho. Uma delas ecoava as críticas: “Quando abro os jornais aqui em São Paulo, todo dia estão falando que Belém não tem saneamento. Eu pergunto, o bairro do Paraisópolis está 100% saneado? Ou tem problema também?”. Para registro, há menos de dois meses o jornal publicou levantamento sobre a falta de esgoto para quase 400 mil paulistanos. Mas, é verdade, sem palavrão.
Fonte ==> Folha SP