Todo aquele que já sentiu sua intuição falando mais alto no amor, apontando que, ainda que tudo parecesse bem, havia algo errado, conhece essa certeza que não passa pela lógica. Uma voz interna sussurra: “algo aqui vai dar errado”. Sabemos reconhecer abandonos iminentes, tragédias anunciadas, lobos em pele de cordeiro… E nos culpamos todas as vezes em que ignoramos essa voz, ousamos ser românticos, entregamos nossos corações aos lobos e, mais uma vez, somos devorados. No fundo sabíamos que era exatamente aquilo que ia acontecer.
Este é aquele momento em que juntamos os cacos da nossa carcaça emocional tentando negar a fragilidade do fim com a força da confirmação da nossa intuição. Juramos para nós mesmos que nunca mais silenciaremos o coração, justamente a única voz na qual deveríamos confiar: a nossa. E a intuição é tentadora porque vai além da lógica —em meio aos escombros do amor moderno ela se oferece como uma espécie de pilar energético, uma arquitetura subjetiva que resiste quando o outro e o mundo falham em nos oferecer abrigo.
Sem desmerecer a espiritualidade, a filosofia e a sabedoria que habitam esse campo não racional, quero te provocar a pensar que essa fagulha que te alertou que “algo ia dar errado” nem sempre está te conduzindo a um caminho de amor pleno. Esse território é também o campo do inconsciente, onde habitam os desejos recalcados, os medos primitivos e os pactos silenciosos com a dor. Por isso prefiro não chamar essa voz de intuição e sim de narrativas fatalistas: tramas que têm a função perversa de te confirmar que a segurança no amor é impossível.
Quando passamos a justificar nossas teorias não apenas com argumentos racionais, mas também com a intuição, ela já não é mais bússola, é armadura.
Dizemos que queremos amar, mas o que buscamos, muitas vezes, são certezas. E, pior, certezas que reforcem a ideia de que toda entrega será, cedo ou tarde, punida. Não sabemos por que o outro nos abandona, mas intuímos —e, olha só, acertamos— que ele nos abandonará. Mas será que acertamos ou criamos essa certeza para não estarmos à deriva, para não nos afogarmos de novo na mágoa, no abandono, na solidão?
E aqui a culpa não é apenas dos seus traumas —não se martirize—, só estamos vivendo em tempos onde a ansiedade é estrutura social e não sintoma individual. E, enquanto não falarmos disso abertamente, seguiremos tentando tratar no indivíduo problemas que são também frutos de um mal-estar coletivo.
Vale marcar que desde a pandemia, como apontam neurocientistas, atravessamos um estresse pós-traumático coletivo: corpos em alerta, sistemas nervosos ativados, cortisol (o hormônio do estresse) constantemente elevado, como se a próxima catástrofe fosse sempre iminente. E infelizmente tem sido…
Em tempos de crise climática, política e econômica, aumento da violência, epidemia da solidão, enfraquecimento dos laços, imprevisibilidade em relação à existência de nossas carreiras, casamentos e da própria ideia de possibilidade de construir um “nós” que dure algum tempo e faça algum sentido, tememos o pior porque, em muitos campos da vida, já estamos vivendo o pior.
A ansiedade não é um ruído no sistema. Ela é o sistema. E as narrativas fatalistas são seu idioma.
O mundo colapsa no macro e no micro. Pessoas explodem por qualquer coisa. Brigam por nada. Choram sem saber por quê. Essa angústia que sentimos (e que às vezes confundimos com intuição) não é resposta a algo específico. É o ruído de fundo da nossa época: um zumbido que impede repouso, entrega, confiança. Um efeito colateral da cultura que prometeu plenitude na hiperconexão e entregou desamparo, vigilância e exaustão.
Sem mapas, sem contornos definidos nos vínculos, sem conversas difíceis tidas olho no olho e com muitos rastros digitais de mensagens, posts e emojis prontos para serem mal interpretados, cada um de nós tenta criar suas próprias zonas de previsibilidade. A relação amorosa se torna assim um campo de gerenciamento emocional onde cada gesto precisa ser decifrado, cada silêncio, traduzido, cada ausência preenchida com um roteiro.
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Criamos vínculos sob o comando do medo e, por medo, tentamos antecipar o fim. E assim criamos histórias de amor sob o efeito desse mesmo medo. Roteiros intuitivamente trágicos. Que sabemos escrever como ninguém. Há aqui algum conforto. Sabemos ser tristes, traídos, trocados. Freud já apontava que o sujeito traumatizado reencena o trauma em sua compulsão à repetição numa tentativa de controlar a cena como se, ao controlá-la, pudesse também controlar, conter e reparar a própria emoção. Reviver o abandono seria uma forma de não ser pego de surpresa por ele.
O que se evita não é o outro, é o não saber. E achar que sua intuição te protege é se privar dos riscos inerentes a qualquer relação. Vivemos aprisionados às nossas versões da história: sobre o amor, o outro, nós mesmos. E, assim, nos afastamos da escuta, da construção conjunta e também do sentir sem saber, do sentido que só se constrói a dois.
Enquanto o amor for vivido como prevenção e não como presença não há intuição que te leve para um relacionamento que efetivamente faça sentido. Não que faça sentido para sua fantasia fatalista ou para sua projeção idealizada. Mas que te faça sentir. Que te atravesse, te traga faltas, respiros, provocações, intervalos, contingências e acasos.
Que as vozes sejam mais as do outro e menos as suas, internas.
Não tenha a pretensão de escrever ou decifrar essa história sozinha. Ela é gostosa justamente porque é vivida junto com alguém. Permita-se viver mais do que teorizar ou intuir.
E se você também tem um dilema ou uma dúvida sobre suas relações afetivas, me escreva no colunaamorcronico@amorespossiveis.love. Toda quarta-feira respondo a uma pergunta aqui.
Fonte ==> Folha SP