Dirigida por Nelson Baskerville e protagonizada por Clara Carvalho, “A Médica” de Robert Icke revisita “Professor Bernhardi” — peça escrita em 1912 por Arthur Schnitzler — para mergulhar em dilemas éticos contemporâneos com uma urgência que ecoa além do palco. A trama acompanha a Dra. Ruth Wolff, uma médica cuja decisão de negar a extrema-unção a uma jovem em estado crítico após um aborto a lança no centro de uma tempestade moral. O conflito, porém, transcende o debate sobre aborto ou laicidade: expõe como o julgamento público, especialmente nas redes sociais, reproduz e amplifica preconceitos enraizados, transformando opiniões em armas.
A encenação adota uma estrutura fragmentada e dinâmica, com o elenco em constante movimento e a cenografia mutante de Marisa Bentivegna refletindo a instabilidade da vida sob julgamento. As projeções de videomapping (André Grynwask e Pri Argoud) incorporam posts, memes e comentários haters, materializando a violência virtual em perseguição real. Esses elementos não são meros efeitos visuais, mas personagens ativos na narrativa: tweets invadem o palco como tiros, infográficos médicos se decompõem em discursos de cancelamento, e a ciência disputa espaço com o ódio.
Clara Carvalho entrega uma performance sóbria porém vigorosa, evitando o melodrama para destacar a ambiguidade da protagonista — nem heroína, nem vilã. Seu corpo serve simultaneamente à personagem e como “tela” para as projeções que a consomem, enquanto o elenco diversificado (em gênero, raça e idade) amplifica a crítica a vieses sociais. Contrastando radicalmente com sua identidade negra fora do palco, Adriana Lessa compõe com rigor um médico branco — figura de autoridade na trama —, criando um tensionamento proposital aos olhos da plateia, mas sem jamais confundir os planos da personagem. Seu trabalho exemplar, como de todos os outros atores, mantém consistência absoluta mesmo diante de um cenário que se redefine a cada cena.
A peça também explora o custo humano do cancelamento em figuras secundárias, como Cacá (Chris Couto), companheira de Ruth que sofre de Alzheimer. Sua morte dilacerante não é apenas uma tragédia pessoal, mas a face mais cruel do ostracismo: o apagamento silencioso de vidas que orbitam o alvo principal do ódio. Enquanto Ruth enfrenta o linchamento público, Cacá enfrenta o apagamento da doença e do isolamento imposto pelo escândalo.
A trama se desenrola em paralelo ao tribunal das redes sociais, onde julgamentos são rápidos, desproporcionais e desprovidos de nuances. A ausência de um “devido processo” no enredo reflete a dinâmica do cancelamento digital, em que reputações são destruídas sem espaço para defesa. A montagem usa a linguagem teatral para provocar reflexão sobre até que ponto a indignação coletiva é motivada por justiça ou por um prazer sádico na condenação.
Em um mundo onde identidades são fluidas, mas preconceitos são rígidos, “A Médica” prova que o palco ainda é um dos últimos espaços onde podemos encarar nossos monstros — antes que eles nos devorem por completo.
Três perguntas para…
… Clara Carvalho
O texto de Robert Icke é conhecido por sua densidade e por levantar questões espinhosas (ética médica, religião, gênero, poder). Como foi mergulhar nesse universo filosófico e dramático?
Essa peça do Robert Icke é supercomplexa, mexe com temas bem delicados como cancelamento, identidade, antissemitismo, misoginia, aborto e suicídio. É um verdadeiro “vespeiro”, e a gente teve que ter um cuidado enorme na montagem para não cair em mal-entendidos ou virar algo panfletário.
A escolha do Nelson Baskerville para dirigir foi perfeita, porque ele consegue abordar esses assuntos pesados com muita delicadeza e poesia, mas também com firmeza, sem que a peça perca a profundidade que o Icke queria.
Uma das coisas mais impactantes é a exigência do [Robert] Icke de ter um ator branco interpretando um homem negro, cuja negritude só é revelada no meio da peça. No começo, achei isso muito desafiador para o Brasil, dada a nossa sensibilidade racial. Mas essa é justamente a sacada do Icke: ele quer desestabilizar o público, forçando a gente a reprogramar o que já vimos e a questionar nossos próprios vieses.
A peça também brinca muito com gênero, raça e etnia. Temos um ator transgênero no elenco interpretando um adolescente em transição, e outros exemplos de atores que desafiam as expectativas. Por exemplo, uma atriz negra [Adriana Lessa] faz um homem branco e um ator negro [César Mello] interpreta um judeu.
Outro ponto que me fez refletir foi a revelação da negritude de um médico, o Paulo (Anderson Müller), no meio da peça. Isso mostra como a montagem nos força a confrontar nossos próprios preconceitos. A Ruth, inclusive, não é uma heroína perfeita; ela é áspera, mas isso se justifica pela sua posição de liderança em um ambiente dominado por homens. A ideia central é desestabilizar o espectador, mexendo com nossas certezas e percepções.
A peça explora temas como verdade, narrativa e como a identidade (gênero, raça, credo) influencia a percepção dos fatos. Como essa discussão, central na direção do Baskerville, se reflete no seu trabalho com o personagem?
A Ruth Wolff é uma personagem de uma complexidade impressionante. Além de tudo que já falamos, tem a questão da sexualidade: ela é casada com uma mulher, mas escolhe manter essa parte da vida bem privada. A companheira até cobra, achando que ela tem vergonha ou medo do julgamento, mas eu defendo que a Ruth tem todo o direito de preservar sua intimidade. Não é uma obrigação dela transformar a vida pessoal numa bandeira política ou numa exposição pública só porque é uma figura de destaque.
Outro ponto que pesa muito é a revelação do aborto que ela fez. Isso vem à tona num programa de TV, de um jeito totalmente antiético, sensacionalista. Embora tenha sido uma experiência muito difícil, ela sentiu que, no momento, foi a decisão certa para ela.
Mesmo sendo uma personagem que às vezes é vista como áspera, autoritária e, sim, gay, a primeira atitude dela na peça, de não deixar o padre entrar no quarto da menina semiconsciente sem que ela tivesse pedido, foi correta como médica. O problema da Ruth é que ela não “faz curva”, sabe? Ela vai reto, não cede, e essa inflexibilidade acaba custando tudo a ela.
A Ruth é, de fato, um personagem trágico. No final, ela perde o CRM, a companheira (que, ironicamente, sofre da doença que a Ruth pesquisa e acaba se suicidando), a amiga/filha Samy (Cella Azevedo), e até o gato. A vida dela desmorona completamente. E a conversa final com o padre é muito bonita e emocionante; para mim, é como se ela pedisse perdão de alguma forma. Ele a aconselha a ter mais sensibilidade com o que é delicado para os outros e diz que nunca é tarde para rever seus pontos de vista, inclusive sobre um possível racismo inconsciente que a Ruth nem se dava conta que tinha.
Essa riqueza da Ruth, uma mulher superinteligente, confrontadora, mas cheia de camadas e que enfrenta tantas perdas, é o que a torna tão fascinante. Aquele texto é uma verdadeira caixa de pressão de temas intensos e pertinentes.
“A Médica” coloca em choque diferentes sistemas de crença. Por que você acha que essa discussão é tão urgente e ressoa tão fortemente no Brasil de hoje?
Eu concordo totalmente que a questão dos conflitos entre sistemas de crença é extremamente urgente no Brasil. A gente vê um crescimento fortíssimo dos evangélicos, que se chocam muitas vezes com as religiões de matriz africana, como o Candomblé e a Umbanda, que sofrem muita agressão.
Enquanto os cristãos, embora ainda sejam a maioria, parecem uma massa mais passiva, os evangélicos são muito atuantes, e as igrejas oferecem um suporte gigantesco para uma parcela enorme da nossa sociedade. Ao mesmo tempo, essa intolerância, essa agressividade que o texto do Icke ressalta, é algo muito presente. E o antissemitismo, que infelizmente atravessa os séculos, está sempre ali, às vezes mais calado, às vezes não.
Agora, então, com toda a situação na Palestina, em Gaza, com o [Benjamin] Netanyahu, essa questão ganha novos e complexos contornos. Essa peça nos mobiliza muito como elenco, porque ela é uma adaptação genial de um texto de 1912 do Arthur Schnitzler, um médico austríaco.
A peça original, “Professor Bernhardi”, era só de homens e focava no antissemitismo. O que o Robert Icke fez foi transformar o médico principal numa médica, a Ruth Wolff, e ao fazer isso, ele abriu um caldeirão de preconceitos e violências, de conflitos identitários que são exatamente o que estamos vivendo hoje. É uma atualização que traz a discussão para o nosso contexto de uma forma muito pertinente.
Auditório do Masp – av. Paulista, 1578 – Bela Vista, região central. Sex. e sáb., 20h. Dom., 18h. Até 24/8. Duração: 105 minutos. A partir de R$40 (meia-entrada) em bilheteria.masp.org.br
Fonte ==> Folha SP