São Paulo
A história de Maria Fernanda Cândido e “O Agente Secreto” começou em Cannes e retorna ao festival seis anos depois. Em 2019, ela estava em Competição com o italiano “O Traidor”, enquanto o diretor Kleber Mendonça Filho apresentava seu “Bacurau”. Eles se conheceram ali, nos coquetéis do festival, dançando e conversando.
Pouco tempo depois, Kleber ligou dizendo que pensou nela para viver Elza, mulher da elite paulistana que, em 1977, tem acesso a informações confidenciais e luta contra a ditadura no filme estrelado por Wagner Moura. O longa está sendo muito elogiado desde domingo (18) pela crítica internacional em Cannes.
“Não sabemos muito sobre a Elza, apenas que é de São Paulo e tem acesso a muita informação da cúpula do poder econômico e político da época. Então, fui criando uma biografia para ela, imaginando essa personagem”, contou Maria Fernanda em entrevista ao F5 em Cannes, logo depois da entrevista coletiva de “O Agente Secreto”, que contou com a participação de jornalistas estrangeiros.
Para Maria Fernanda, sua personagem mostra a distância que havia entre o poder centrado no Sudeste na época da ditadura e um Nordeste que não fazia parte das maiores decisões do poder. “Essa diferença é uma questão que avançou muito nos últimos anos. Mas ainda guardamos resquícios dela. Será que é uma questão resolvida? Com certeza não. Ainda é um trabalho em processo”, reflete.
Pão de queijo na mala
Morando há sete anos em Paris com o marido, o empresário francês Petrit Spahija, e os filhos Tomás, 19, e Nicolas, 16, ela tenta diminuir as saudades do Brasil com dois “paliativos”: a comida brasileira e os amigos que passam pela capital francesa. Sempre que vai ao Brasil, traz na mala uns pacotes de polvilho para pão de queijo e outras iguarias. “Trago mais coisas também… mas deixa para lá”, brinca.
O filho mais velho já está ingressando na faculdade, e o mais novo começa o processo de vestibular (o “baccalauréat”), que é bem diferente do Brasil. Pergunto se os filhos ainda moram com ela ou pensam em morar sozinhos. “Que pergunta é essa?! Moram comigo, sim! Esse tema é muito forte na vida de mães de meninos. Eles crescem e tomam o rumo deles, já não querem tanto a minha companhia, precisam se desvencilhar da relação”, diz, concordando que já existe um “fantasma do ninho vazio” rondando.
Uma das soluções é focar no trabalho e nos novos projetos. Maria Fernanda diz que recebe convites constantes de projetos na TV e no streaming do Brasil –e mesmo alguns projetos internacionais–, mas não tem como aceitar todos eles. A Globo a convidou para um personagem fixo no remake de “Renascer” há dois anos, mas ela não tinha como passar um ano inteiro no Brasil gravando.
“Recusei. Daí me ligaram três dias depois dizendo que tinham uma participação para mim nos primeiros capítulos. Amei fazer”, conta. Foi a chance de contracenar com colegas que admira como Enrique Diaz, Chico Diaz, Humberto Carrão e Edvana Carvalho.
Sua última novela inteira foi “A Força do Querer” (2017), em que vivia a mãe intolerante de uma jovem que se descobria trans. “A novela abordou um tema que na época não estava no dia a dia do brasileiro, estava à frente do seu tempo.” Fazia dez anos que ela não encarava um ritmo diário de gravação com muitas cenas para decorar, mas isso não a assustou. “Eu amo trabalhar, acordar cedo, passar muito tempo estudando meus personagens”, diz.
Sinal de Clarice
Mas a atriz tem um assunto que faz brilhar seus olhos: “A Paixão Segundo G.H.”, seu último filme como protagonista em que viveu a mulher que repensa toda a sua vida a partir do encontro com uma barata em casa, adaptação do livro de Clarice Lispector. Seu trabalho no filme guarda uma história de 22 anos.
Em 2002, ela fazia na Globo seu primeiro trabalho com o diretor Luiz Fernando Carvalho, a novela “Esperança”. Luiz começou a dar a ela “uns xerox” com trechos do livro junto com os textos dos capítulos. No final da novela, ele a presenteou com o livro, que ela leu pela primeira vez naquela época, com 29 anos.
Seis anos depois, eles gravavam a minissérie “Capitu” quando ele a convidou para viver G.H., um personagem que muitos consideravam infilmável, no cinema. Mas o projeto demorou mais nove anos para tomar forma. No final de 2017, ela terminava “A Força do Querer” quando ele a ligou.
“Em todo esse tempo, eu nunca o cobrei sobre o filme. Uma bela tarde ele me liga dizendo: ‘Escuta, vamos filmar G.H. Quando você está livre?’. Dois dias depois de terminar a novela, eu entrei em laboratório com ele, num trabalho que levou um ano inteiro.”
Quando o filme voltou aos planos, Maria Fernanda procurou o livro que Luiz tinha dado a ela 15 anos antes. Não encontrou. Um dia, estava dormindo quando escutou um estrondo vindo de sua biblioteca.
Uma prateleira de madeira tinha desabado, deixando uma pilha de livros espalhados pelo chão. Acima da pilha, um livro tinha as páginas abertas. Nem é preciso dizer qual. “Foi maravilhoso. Pude comparar as anotações que tinha feito aos 29 anos com as que eu estava fazendo 15 anos depois.” É… Clarice tem maneiras maravilhosas de se manifestar.
Fonte ==> Folha SP