Um cineasta é atormentado por sonhos de um novo desfecho para o filme que acabou de concluir. Para provar aos críticos que zombam dele —e a si mesmo— que será uma obra-prima, decide refazer parte da história. Ele convence atores e equipe a voltar e gravar tudo em dois dias. A trama dialoga com inquietações do próprio criador, Kim Jee-woon.
“Toda vez”, responde Kim sobre pensar, ele mesmo, em regravar seus longas. “Até apresentar o filme, você tem que lapidar, arrumar. Me questiono: ‘Por que gravei desse jeito?’, ‘Se gravasse de novo, não faria assim’. ‘Se tivesse mais dois dias, teria uma obra-prima tão boa’. Toda vez que filmo, sinto um certo remorso.”
O diretor é ainda pouco conhecido no Brasil –seus trabalhos raramente chegam ao circuito–, apesar da filmografia considerável. Kim, no entanto, é um dos nomes mais influentes do cinema coreano, numa tríade formada por Bong Joon-ho, de “Parasita”, e Park Chan-Wook, de “Oldboy”. Até por isso, “Na Teia da Aranha” estreou com expectativas na quinta-feira (12).
O veterano vinha de uma produção constante quando os estúdios foram fechados na pandemia. Nessa época, bateu a ansiedade, ele passou a questionar o futuro do setor e sua relação com os filmes. “‘O que é cinema para mim?’, eu pensava. ‘Ainda amo cinema? Ainda tenho essa paixão?’ Era algo que estava ficando nublado”, conta.
“Na Teia da Aranha” surgiu como uma resposta a essa crise. “Pude resgatar essa paixão internamente”, ele diz. “Era uma forma de eu me estimular e também encorajar outros cineastas a voltar a produzir.” A obra estreou na seção não-competitiva do Festival de Cannes de 2023 e chega agora pela Pandora Filmes, a mesma que trouxe “Parasita”, vencedor do Oscar.
A tal paixão nasceu cedo. Kim, hoje aos 60, começou a ver filmes antes de entrar na escola, influenciado pelo pai cinéfilo. “Ele me contava muito sobre os bastidores do cinema”, relembra.
“Teve uma época em que não sabia o que fazer, se eu tinha que ser diretor, se tinha que escrever ou atuar. Queria fazer alguma coisa sobre cinema”, diz. Aos 30 e poucos, se sentindo sem rumo, pegou o parco dinheiro e viajou à França. Lá, maratonou obras de vários cantos do mundo. Foi no escurinho da sala da La Cinemathèque Française que decidiu: seria diretor.
Duas décadas depois, ele revisitou o local, onde deu uma aula e ganhou retrospectiva, no ano passado. “Lembrei da época em que estava sem emprego e só sonhava em ser um cineasta. Foi o momento de realização de um sonho.”
Kim faz um exercício de metacinema ao ambientar seu novo longa num estúdio, nos anos 1970, e cria um filme dentro do filme. A comédia acompanha o caos das regravações enquanto os envolvidos driblam a censura do regime militar da Coreia do Sul, que considera a nova trama “insultante para a moral comum”. O cineasta ainda inventa de filmar o final em plano-sequência, antes nunca tentado.
O diretor buscou um episódio em que o cinema coreano tivesse passado por uma crise igualável à da pandemia, e chegou à ditadura. “O Estado tinha uma opressão violenta, até assassina, sobre o cinema naquela época e na cultura em geral. Quando resgatei essa memória, ela serviu como contexto histórico. Fui ver como nossos veteranos superaram a crise.”
O cineasta frustrado da ficção é vivido por Song Kang-ho, conhecido por aqui por “Parasita”, parceiro de longa-data de Kim. Ele estrelou cinco de seus filmes, incluindo a estreia, “Tudo em Família”, em 1998, quando era um rosto desconhecido. Hoje, é um dos atores mais reconhecidos da Coreia do Sul. Tal qual Lee Byung-hun, o vilão de “Round 6”, que também fez nome ao protagonizar filmes de Kim.
Jee-woon é um nome de prestígio entre os atores. Já seu estilo é mais difícil de definir. Ele fez de tudo: suspense, drama, comédia, terror. “Quando eu era criança, assistia a vários filmes. De faroeste a comédia. Eu sentia um prazer diferente com cada gênero. Quero repassar esse prazer ao público”, justifica.
Se fosse arriscar algo inédito, seria um melodrama romântico ou um romance triste. “Sinto uma tristeza em tudo o que acho bonito.” Em comum, diz que seus filmes têm um clima noir e refletem sobre a luz e o lado escuro do humano. “A vida nunca vai na direção que a gente quer. Acho que tentei falar sobre isso em todos os meus filmes.”
Em “Na Teia da Aranha”, ele adota um tom mais leve, que se destaca dos longas marcados sobretudo pela violência. Kim é conhecido internacionalmente pelos filmes de terror, entre eles, “Eu Vi o Diabo” (2010), com Choi Min-sik, ator de “Oldboy”, que atraiu 1,8 milhão de espectadores.
A produção foi censurada duas vezes, primeiro caso do tipo no país asiático. Apesar da versão “amenizada”, continua lá a violência da história sobre um serial killer. “Pensando bem, agora até eu me arrependo. Por que tive que gravar tão violentamente essas cenas?”, brinca o autor.
Seu trabalho mais premiado é “Medo”, sobre uma garota que reencontra a irmã ao voltar de uma clínica psiquiátrica. O relacionamento com a madrasta entra em conflito e coisas sobrenaturais acontecem. Kim brinca com as cores e tomadas longas para construir um terror psicológico, levando algo até então pouco visto nos filmes coreanos do gênero.
“Medo” foi lançado em 2003, mesmo ano de “Oldboy”, de Park Chan-wook, e “Memórias de um Assassino”, de Bong Joon-ho. As produções marcaram o início de uma nova era no cinema contemporâneo sul-coreano, a dos chamados “filmes bem-feitos”, que equilibram apelo comercial e direção artística.
Essas obras passaram a ser vistas como um contrapeso saudável numa indústria cada vez mais dependente das táticas agressivas dos blockbusters. “Medo” se tornou a maior bilheteria de um terror da história do país asiático. “Oldboy” levou 3 milhões de pessoas ao cinema, audiência grande para a época, e arrematou o Grand Prix do Festival de Cannes.
“Jee-woon faz produções de alta qualidade que fazem sucesso na Coreia. Seus filmes são comerciais, mas têm estilo próprio”, explica Oh Dong-jin, crítico de cinema e ex-copresidente da Asian Film Market. “Ele conseguiu produzir longas com palavras fáceis para o público entender, mas que têm um conteúdo e significado denso.”
Assim como fizeram Bong e Park, Kim ensaiou acenos ao mercado ocidental ao co-produzir filmes com os Estados Unidos e trabalhar com atores estrangeiros. “A Coreia é um mercado muito pequeno, então esse é um caminho para expandir a indústria”, afirma Oh.
Seu último trabalho foi a série de ficção científica “Dr. Brain”, primeira produção toda coreana da AppleTV+, estrelada por Lee Sun-kyun, de “Parasita”, que morreu em 2023. Foi Kim quem dirigiu Arnold Schwarzenegger em seu retorno à atuação após mandato como governador da Califórnia, com “O Último Desafio” (2013).
“The Hole”, seu próximo filme, se passa na Coreia do Sul e nos EUA. O cineasta retorna ao suspense ao adaptar o livro homônimo da escritora Pyun Hye-young, primeira obra coreana a vencer o Shirley Jackson Award, prêmio americano de literatura de terror e fantasia.
Segundo ele, a história será um thriller psicológico sobre relacionamentos e acompanha a relação entre um casal jovem, um americano e uma sul-coreana, e a sogra deles. O par é interpretado pelo britânico Theo James, de “Divergente” e “White Lotus”, e Jung Ho-yeon, modelo que despontou em “Round 6” e faz seu retorno à atuação de um longa, que atuam ao lado de Yeom Hye-ran, do k-drama “Se a Vida te Der Tangerinas”.
Kim finalizou as gravações no país asiático poucas semanas antes de vir pela primeira vez ao Brasil, trazido pelo Centro Cultural Coreano como destaque da 14ª Mostra de Cinema Coreano. Seu “A Era da Escuridão”, que atraiu 7,5 milhões de espectadores em 2016, abriu o festival em São Paulo.
É um filme político. Enquanto “Na Teia da Aranha” aborda o poder do Estado, este fala de outra opressão, a da ocupação japonesa na Coreia, ao seguir um grupo da resistência na década de 1920. “Foram duas eras difíceis da nossa história que tivemos de enfrentar. Tentei trazer luz sobre a perspectiva de como encarar esses momentos críticos”, diz o cineasta. Ele também participou de debate com o público após a sessão, numa rara oportunidade de contato com um cânone do cinema coreano.
Fonte ==> Folha SP