Lutar por um amor é falta de amor próprio? – 25/06/2025 – Amor Crônico

Leitor pergunta: Amar é mesmo dar o que não se tem? - 21/05/2025 - Amor Crônico

O que seria “falta de amor próprio” quando pensamos na nossa relação com quem amamos? Acho perigoso, moralista e um tanto reducionista traduzir a persistência no amor de outro alguém à conta de um suposto déficit de autoestima. Como se amar demais alguém fosse prova de que nos amamos de menos.

“Se valorize” é o conselho que você recebe quando está mais entregue que alguém em uma relação. E sabemos bem que nessa frase está contido o convite à retirada. Isso porque, numa lógica que mais serve ao mercado do que ao desejo, supomos que uma relação só é legítima quando é bem equilibrada, bem correspondida, rigorosamente proporcional. Como se o amor só valesse a pena quando se trata de um “ganha-ganha”. Nesta frase aparecem dois equívocos que sabotam o amor: Primeiro é trazer o universo do “valor” e não da validação pro universo emocional. De novo o pensamento atravessado por uma espécie de contabilidade afetiva. Me pergunto, no campo dos afetos, quem faz o lastro desta moeda emocional? Além disso, condicionar a felicidade conjugal ao tal saldo positivo e a divisão igualitária dos lucros do tal “ganha-ganha” é construir a própria infelicidade. Amar é sempre perder. Se perder. Se despender. Como já apontava Freud, amar é necessariamente deslocar parte da libido que antes estava investida no eu para colocá-la no outro. Algum esvaziamento de si é sempre constitutivo do amar.

Isso significa, então, que sempre vale a pena acreditar e continuar lutando? Não. Mas significa que talvez a pergunta mais honesta não seja sobre “falta de amor próprio” e sim sobre falta de clareza e apropriação quanto aos próprios desejos nesse cenário. Assumir essa perspectiva é desconfortável porque frequentemente nos confronta com vontades que contrariam nossos julgamentos racionais e com escolhas que, muito provavelmente, desaconselharíamos às nossas melhores amigas.

Não raro o amor nos posiciona exatamente nesse vão entre o que sabemos e o que sentimos, entre o que juramos que nunca aceitaríamos e aquilo que, no fundo, estamos dispostas a bancar. O que você está disposta a bancar? Não como uma vítima do outro que não se decide, que não te dá o que você precisa; nem como refém de um sentimento que é mais forte do que você. Mas como alguém que se apropria do caminho escolhido e entende os riscos e renúncias que ele o impõe —um movimento que, obviamente, não virá sem angústia. Não transforme-a em culpa.

Ao escolher lutar por uma relação é preciso também entender quais são as batalhas que você está escolhendo e como está decidindo lutar. Percebo que muitas dessas histórias de obstinação afetiva são crônicas de uma desilusão amorosa anunciada, simplesmente por condicionarem a felicidade conjugal à mudanças ligadas a traços da personalidade do outro: “queria que ele fosse mais amoroso”, “gostaria que ela fosse menos pragmática”… Quando aquilo que você quer do parceiro toca traços estruturais —seu jeito de ser, seus valores, sua maneira de existir no mundo— talvez a questão não seja sobre ele não te amar o suficiente. Talvez seja sobre você, inconscientemente, escolher se manter em batalhas destinadas à frustração.

Não, este não é o último amor que vai te atravessar assim. E não, ele não é mais forte do que você. O que talvez seja mais forte, aqui, é a posição subjetiva que você ocupa diante do amor. Escrevi uma coluna recente sobre “como sair de uma relação ioiô onde o outro está com a corda” e vale trazer algo dela pra cá: há um ganho, muitas vezes inconsciente, em se manter como mártir do amor impossível. Por que a paralisia do outro faz com que você justifique a sua. E, assim, você se mantém ancorada nesse impasse afetivo, onde sustentar a dor parece, por um tempo, menos arriscado do que encarar o vazio que é se lançar ao novo, ou melhor, aos novos: aos seus novos eus; a possíveis novos amores; a narrativas da sua vida que não se limitem à realização desse romance ou a desilusão amorosa como destino inescapável. O amor não é impossível. O que te aprisiona é a fantasia não só de que só existe essa pessoa, mas de que só existe essa forma, este enredo, esse cenário.

As pessoas podem mudar? Podem. Mas isso diz respeito ao desejo e aos limites delas, que vão muito além da quantidade de afeto que têm por nós. Mas uma coisa que pode mudar é a forma como você atua nessa resistência afetiva. Percebo que a postura mais comum é manter-se à espera, a espreita, a deriva… acreditando na mudança como um ato de pura fé. Aqui, mais uma vez, você não se apropria da responsabilidade de mudar de posição para construir a relação numa configuração que te machuque menos.

A mudança que te proponho diz respeito à forma como você se interroga e coloca para o outro quais seriam as condições mínimas para que essa relação seja boa pra você. Passamos muito tempo interrogando e flexibilizando nossos limites —”quanto tempo mais posso esperar?” “Até quando sustentarei a indefinição”— mas pouco nos dedicamos a brincar de imaginar quais seriam as configurações confortáveis para um amor que acolhe mais do que machuca. Mudar a posição não significa, necessariamente, ir embora. Significa deixar de ser refém do desejo do outro e começar a se perguntar seriamente: “o que eu quero construir aqui?” e, se isso for impossível, que seja impossível porque você nomeou os termos, fez as perguntas certas e se responsabilizou pelo próprio desejo. O medo de inviabilizar o “talvez” costuma silenciar aquilo que mais precisava ser dito.

A gente acha lindo falar sobre “o poder da vulnerabilidade” mas é a mesma vulnerabilidade que nomeamos como carência, humilhação, autoengano… Já que entendemos que ela é realmente poderosa, assim como o amor, que tenhamos coragem de acessar sua potência e, através dela, deixemo-nos navegar mais por nossos desejos do que pela nossa moral.

Vale ainda lembrar que grande parte das coisas (senão quase todas) só fazem sentido à posteriori. E enchemos os olhos de lágrimas ao compartilhar e ouvir histórias de amores que atravessaram turbulências, desencontros, maremotos, e após muitos desencaixes, hoje se narram como um amor construído com paciência e jogo de cintura. Mas é curioso perceber que aquilo que, hoje, chamamos de persistência e construção, talvez no durante tenha sido visto como teimosia, apego, ingenuidade, ilusão… ou, quem sabe, falta de amor próprio.

Se esse amor te mobiliza tanto, tenha fé não apenas numa iluminação divina que mudará as configurações mas também na possibilidade que vocês dois têm de conversar e reorganizar os arranjos, acordos, rotinas. Sei que existe um medo enorme de, ao partir para uma ofensiva construtiva nessa batalha, haja o risco de que tudo rua. Vai doer. Óbvio. Mas não seria mais digno que esse amor morra com você lutando por ele do que que você veja ele definhar como quem observa a areia escoar por entre os dedos?

Pois, ainda que o amor morra, se você se dispôs a lutar sempre há um ganho nessa perda. Erich Fromm em “A arte de amar” nos convida a encarar o amor como arte e, como toda arte, quanto mais praticamos, mais nos desenvolvemos nela. Seguir lutando por um amor seria, assim, uma oportunidade imensa de exercitar suas capacidades afetivas —não por esse ser amado, mas por você. Nesse persistir da batalha o que você gostaria que expandisse em você: sua capacidade de falar sobre temas difíceis, sua coragem de demonstrar afeto, sua resiliência para sustentar a incerteza? Quando você se apropria também desses exercícios e não apenas desse amor todo, essa escolha de qualquer forma pode te fazer potente.

E se você também tem um dilema ou uma dúvida sobre suas relações afetivas, me escreva no colunaamorcronico@amorespossiveis.love. Toda quarta-feira respondo a uma pergunta aqui.



Fonte ==> Folha SP

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