São Paulo
The New York Times
Gilberto Gil estava vivendo no exílio há um mês quando viu Bob Dylan subir ao palco pela primeira vez. Foi em agosto de 1969, quando Gil, que hoje é uma figura internacional reverenciada com uma carreira de 60 anos, havia acabado de completar 27 anos.
A ditadura militar no Brasil o havia “convidado” a deixar o país após uma prisão sob acusações de “incitar a juventude à rebelião” durante um show no Rio de Janeiro, entre outras acusações. Forçado a fugir, Gil escolheu Londres —um ponto de encontro para músicos e artistas expatriados, com sua vibrante cena cultural e liberdade artística— como seu novo lar.
Ele chegou a tempo para o Festival da Ilha de Wight e sabia que não poderia perder a chance de ver Dylan fazer seu primeiro show desde que um acidente de motocicleta quase lhe tirara a vida. “É aquela passividade, quase”, disse Gil em uma entrevista recente. “Aquela calma que ele tem no palco, sem muitos gestos exuberantes. Era isso que eu queria absorver e aplicar à minha própria performance.”
Ao longo dos anos, fosse sua imagem a de um incitador da juventude ou a de um filósofo perspicaz, ele o fez. Mesmo quando Gil estava no palco em São Paulo em abril em sua turnê de despedida, foi a eloquência de suas palavras e as memórias que sua música evocava que cativaram 40 mil fãs.
Um coro de vozes acompanhou Gil enquanto ele guiava os espectadores pelos muitos gêneros de sua carreira —samba, baião, jazz, reggae, rock e pop internacional, entre outros. Inovador com um talento para preservar os estilos clássicos de seu país enquanto os desenvolvia, Gil usou tanto sua música quanto sua voz para ajudar os brasileiros a sentirem orgulho de suas origens e esperança em seu futuro.
Além de lançar dezenas de álbuns, ele trabalhou na política desde 1987 e serviu como ministro da Cultura do Brasil de 2003 a 2008. Gil, agora com 83 anos, admite que é hora de desacelerar.
Ele não evita falar sobre o envelhecimento: é apenas mais uma mudança em uma vida de metamorfoses. E o nome que deu à sua turnê final de estádios —”Tempo Rei”, emprestado de sua canção de 1984 sobre a passagem do tempo, a brevidade da vida e a necessidade de transformação— alude exatamente a isso.
“As classificações de ‘última turnê’, ‘último capítulo’, ‘fim de carreira’ são todas válidas”, disse ele. “Estou essencialmente em uma turnê que encerrará um ciclo que durou mais de 60 anos.”
Mas a decisão de se afastar das apresentações ao vivo não é um afastamento da música, insistiu Gil. É uma forma de se reconectar com ela.
“Sempre terei meu violão, meu companheiro inseparável”, disse ele em uma recente entrevista por vídeo do Rio, onde estava fazendo uma pausa entre shows para passar tempo com a família. “Mas minha relação com ele será mais aberta, mais livre. É mais simples quando você não tem tantos compromissos. Terei muito mais tempo para eventualmente voltar a compor e talvez gravar álbuns. Minha música continuará.”
A vida musical de Gil começou na cidade de Salvador, no nordeste do Brasil, onde, quando criança, ouviu pela primeira vez a cantora e compositora sul-africana e ativista dos direitos civis Miriam Makeba enquanto escutava discos na casa de um amigo. Isso despertou seu interesse em como a música africana deu vida a alguns de seus sons brasileiros favoritos e proporcionou uma ligação inicial entre música e política.
Inspirado pelo músico afro-brasileiro Luiz Gonzaga, conhecido como o Rei do Baião, Gil começou a aprender seu primeiro instrumento —a sanfona— e, aos 17 anos, ingressou em uma banda chamada Os Desafinados e voltou sua atenção para a bossa nova, um novo estilo sutil que vinha do Rio de Janeiro com melodias sincopadas e harmonias influenciadas pelo jazz.
“Acho que, devido à natureza de como a própria música brasileira surgiu, pertenço a um grupo de artistas que foram altamente influenciados”, disse Gil. “Nasci nesse caldeirão de musicalidade.”
Sua aliança com Caetano Veloso, que se tornou um amigo rápido quando foram apresentados em 1963 pelo produtor Roberto Santana, provaria ser uma das mais consequentes de sua carreira. Junto com a irmã de Veloso, Maria Bethânia, Gal Costa, Tom Zé e membros da banda Os Mutantes, eles lideraram um movimento cultural chamado Tropicália, que desafiava as normas políticas e sociais de seu país, misturando os estilos brasileiros de sua juventude com influências estrangeiras como pop e rock psicodélico. A música abraçava ideias de liberdade pessoal desenfreada e inspirou artistas como David Byrne.
O governo militar não aprovava a brincadeira desafiadora de Gil e Veloso, então eles se encontraram em Londres, onde permaneceram por três anos, um período que ele agora recorda como agridoce.
“Eu tinha acabado de reconstruir minha vida com Sandra”, disse ele, referindo-se à sua segunda esposa, “e tivemos nosso filho, o primeiro de nossos três filhos, em Londres”, disse ele. “Era uma vida doméstica austera, muito simples, mas ao mesmo tempo havia essa presença de artistas brasileiros de todas as áreas: música, teatro, cinema.”
“E havia esse novo ambiente com artistas ingleses que também queriam colaborar conosco”, prosseguiu. “Era tudo isso, mas depois havia a saudade do Brasil. Havia tanta distância. A falta da nossa língua, ter que aprender inglês apenas para se comunicar e depois também para compor canções. Não foi fácil.”
“Mas”, acrescentou, “tenho grande gratidão pelo que Londres fez por mim durante a ditadura”.
Gil lançou seu aclamado álbum autointitulado de 1971 lá. Ele tocou no Festival de Glastonbury e em salas de concerto por toda a Europa, e aprofundou seu conhecimento de reggae e jazz.
Ao retornar ao Brasil, sua música tornou-se onívora, participando do rock, reggae e música africana, enquanto mergulhava na cornucópia de estilos locais do Brasil.
“Acho que ouvi Gilberto Gil antes mesmo de saber que o que estava ouvindo era Gilberto Gil”, disse a cantora pop brasileira Iza, de 34 anos, conhecida por suas canções pop influenciadas pelo Afrobeats e R&B. “Ele faz parte do imaginário da minha família, da criação da minha identidade musical. Ele me fez ver que a música brasileira, a música negra, é nobre. Ele nos ajuda a sentir que fazemos parte de algo e podemos amar de onde viemos.”
Mas Gil queria colocar mais do que música no mundo. Quando criança, ele havia observado seu pai —médico de profissão— envolver-se na política local quando a família morava em Ituaçu, uma pequena cidade rural no estado nordestino da Bahia.
“Passei um período da minha infância vivendo nesse mundo, com cidadãos, candidatos, eleitores”, disse ele. “E de certa forma isso deixou sua marca na minha alma e na minha consciência.”
No final da década de 1980, as reformas de perestroika e glasnost de Mikhail Gorbachev tornaram-se influências improváveis na decisão de Gil de entrar na arena política. “Foi quando entendi que a vida política precisava de novos impulsos, novo entusiasmo, novas análises”, disse ele.
Suas esperanças de se tornar candidato a prefeito de Salvador em 1988 foram frustradas após críticas de seus companheiros de partido mais conservadores, que se sentiam desconfortáveis não apenas com sua escolha de estilo —ele preferia túnicas a ternos e usava brincos e um penteado afro—, mas também com algumas de suas ideias, como preservar o meio ambiente e a cultura afro-brasileira. Em vez disso, ele concorreu ao Conselho Municipal e venceu.
Quando finalmente se tornou ministro da Cultura do Brasil, ele criou programas para impulsionar a diversidade cultural, artística e étnica do país. Foi um período gratificante, disse ele, mas veio com sacrifício.
“Foram pelo menos 10 anos em que tive que dividir meu tempo entre política e música”, disse ele. “E a música sofreu. Foi provavelmente o período mais difícil da minha carreira musical.”
Agora ele está pronto para desacelerar um pouco. “Já me sinto mais velho, mais cansado”, disse ele, “precisando de um ritmo menos intenso.”
Sua turnê final é a primeira vez que Gil faz tantos shows enormes seguidos —alguns públicos excederam 60 mil pessoas— e a resposta, disse ele, tem sido “surpreendentemente entusiástica, acima das minhas próprias expectativas”.
Trabalhando ao lado de seus filhos, Bem e José Gil, que são diretores musicais da turnê e tocam em sua banda, ele criou setlists divididos por gênero, selecionando de três a cinco músicas em cada um que ele sabia que o público gostaria de ouvir pela última vez, algumas com nova instrumentação e outras, como “Procissão”, retornando aos seus arranjos originais.
Ele também tem tocado “Cálice” —uma canção cheia de metáforas sobre liberdade que escreveu durante a ditadura militar em 1973 com Chico Buarque, mas não pôde lançar até 1978 por causa da censura— ao vivo pela primeira vez.
A turnê lhe trouxe alegria, disse ele, mas o deixará com saudade, uma palavra em português que é difícil de traduzir, mas envolve um sentimento de anseio, desejo ou nostalgia. “É um sentimento misto”, disse ele. “Ao mesmo tempo em que há novidade, surpresas no que estou fazendo, é uma experiência que não continuarei a ter.”
Durante o show de abril em São Paulo, Gil fez questão de tocar todos os sucessos do público —”Aquele Abraço” e “Andar com Fé” eram imprescindíveis— e adicionou composições que marcaram seus próprios momentos de mudança de vida, como “Domingo no Parque”, uma presença constante na cultura brasileira desde que Gil a apresentou na TV em 1967 com Os Mutantes.
Enquanto imagens de sua vida apareciam nas telas gigantes atrás dele —instantâneos íntimos de sua família, fotos históricas da cultura afro-brasileira, retratos de suas influências mais importantes— Gil ficou atrás do microfone, com um violão na mão, e sorriu.
Fonte ==> Folha SP