A Companhia Bípede de Teatro Rupestre pega a trilogia de Arnold Wesker (1932-2016), a desenterra, sacode, e entrega ao público como um artefato ainda quente. Sob a direção de Felipe Sales, “Canja de Galinha”, “Raízes” e “Estou Falando de Jerusalém” fazem um diagnóstico desagradável de como o fracasso é a única utopia que nunca envelhece.
Sales entende que Wesker não escreveu peças sobre socialismo —escreveu peças sobre o que acontece quando o socialismo (ou qualquer outro sistema) se choca contra a carne humana. E é essa carne que a encenação expõe, crua e trêmula. Há algo de tchekhoviano nesta abordagem: assim como o mestre russo, Wesker captura a desilusão e a inação de personagens presos entre sonhos e realidade. Mas enquanto Tchékhov retrata a aristocracia russa em declínio, Wesker mergulha na classe trabalhadora britânica, transformando cozinhas e casas rurais em palcos para dramas íntimos e universais.
A cozinha dos Kahn, cenário claustrofóbico de “Canja de Galinha”, é um ringue onde Sarah Kahn luta contra o mundo e, pior, contra sua própria família. A atriz Nanda Versolato interpreta uma matriarca cuja teimosia é ao mesmo tempo admirável e patética —como todos nós quando insistimos em acreditar.
Em “Raízes”, Beatie Bryant —personagem de Emília Helena— é uma força da natureza que explode em meio à mediocridade. Sua fala final, um monólogo que poderia ser reduzido a um clichê de “empoderamento”, soa menos como triunfo e mais como um grito perdido no vazio. A direção é sábia o suficiente para não romantizar seu despertar —assim como Tchékhov evitava consolar seu público, Wesker deixa claro que a consciência, sozinha, não basta. A falha de comunicação entre Beatie e sua família ecoa diálogos de “Tio Vânia” ou “As Três Irmãs”, onde as palavras nunca alcançam seu destino.
E então chegamos a “Jerusalém”, onde Ada Kahn (Bea Lerner) e Dave Simmonds (Thiago Winter), derrotados, voltam para a cidade após descobrirem que a vida no campo não é tão romântica quanto imaginaram. Sales não permite que o público se console com a ideia de que “valeu a pena”. Não valeu. E é exatamente por isso que a luta persiste, teimosa e inútil como um ato de teatro.
A sacada é não tentar fazer Wesker soar “contemporâneo”— ele já é. O que o diretor faz é escancarar o quanto nossas crises atuais são ecos das crises dos Kahn: a desilusão com a política, o culto ao individualismo, a sensação de que o futuro nos foi roubado. O minimalismo da encenação —cenários simples com caixas de papelão, luzes que cortam como facas— é uma escolha mais ética do que estética. Não há como disfarçar a ferida.
Três perguntas para…
… Felipe Sales
Como uma companhia de teatro independente consegue viabilizar a montagem de um projeto tão ambicioso como a Trilogia Wesker? Quais foram os maiores obstáculos (financeiros, estruturais, de divulgação)?
A resposta curta é difícil. A resposta longa aborda algumas complexidades do nosso trabalho. Atribuo o sucesso da empreitada à confiança do elenco em meu trabalho e a colaboração de cada um para que os três espetáculos saíssem do papel. Se um deles sequer não tivesse comprado a maluquice, não teria acontecido.
Falando mais a fundo sobre dificuldades, a trilogia é um projeto enorme e foi bastante difícil organizá-lo. Contam-se três anos desde a ideia inicial até a estreia. Acredito que o maior desafio foi a logística de ensaios. Com três peças performadas, praticamente, pelo mesmo elenco fazendo personagens muito diferentes entre si, nossa rotina chegou a seis ensaios por semana na reta final. O longo período de pré-produção ajudou o orçamento a não ser uma questão.
Como você equilibrou a linguagem original das peças (dos anos 1950/60) com uma sonoridade contemporânea brasileira? Houve termos ou expressões que foram especialmente desafiadores para traduzir?
A maior dificuldade não está na linguagem dos personagens, essa é bastante cotidiana, mas nas referências que eles trazem. Essas, creio eu, foram trazidas para o nosso universo com sucesso.
“Raízes”, a segunda parte da trilogia, foi especialmente desafiadora. Nela Wesker translitera o sotaque e o modo de falar de Norfolk, tornando uma simples frase como “what’s the matter with you, girl?” em “waas matter wi’ you, gal?”(desse jeito mesmo).
Duas questões surgiram: a primeira, como transpor o peso social que os sotaques possuem para o contexto britânico; a segunda, qual deveria ser esse sotaque. Claro, toda tradução é feita de escolhas, ou, como diríamos no teatro, está imbuída de um super-objetivo. Neste sentido, perdas certamente ocorreram. No entanto, de maneira geral, estou pessoalmente feliz com o resultado final.
A Trilogia Wesker discute socialismo, desilusão política e identidade de classe. Como você enxerga o diálogo desses temas com o Brasil atual?
Tchékhov escreve que a função do artista é não oferecer respostas, mas levantar perguntas. Neste sentido, não tenho uma resposta suficientemente satisfatória para essa pergunta. De maneira geral, vejo na trilogia o levantamento de uma hipótese para a ascensão do projeto neoliberal a partir dos vácuos deixados pela falta de organização da esquerda política.
No Brasil contemporâneo, a crescente vertiginosa do neofascismo, menos de um século após uma extensa ditadura da qual ainda não fechamos as feridas, tem criado um ambiente muito próximo do de “Canja de Galinha”. Eu, pessoalmente, vejo as personagens do espetáculo no meu cotidiano: os desesperançosos que não conseguem ter forças para lutar contra o modo de produção e acabam sucumbindo, os otimistas irreparáveis que não dão o braço a torcer mesmo quando sofrem as pancadas da vida, os pequenos burgueses que não se reconhecem como trabalhadores muito embora estejam na iminência de voltar a ser proletariado, entre tantas outras figuras.
Um enorme ganho de Arnold Wesker foi saber que a esquerda não é um grupo homogêneo e conseguir retratar suas diferentes vertentes. Nosso principal objetivo em encenar a trilogia na íntegra é debater os caminhos que a classe trabalhadora tem tomado e levar uma mensagem de organização popular.
Espaço Parlapatões – praça Franklin Roosevelt, 158 – Consolação, região central. Canja de Galinha: qua., 20h. Raízes: qui., 20h. Estou falando de Jerusalém: sex., 20h. Até 29/8. Duração: 120 minutos (cada peça). A partir de R$ 30 (meia-entrada) em sympla.com.br ou na bilheteria do teatro
Fonte ==> Folha SP