Estamos criando milhões de zumbis digitais, diz cientista brasileiro sobre internet

Estão em discussão diretrizes para regulamentação de plataformas digitais

Desde 1989, o médico e neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis estuda o cérebro humano. Com base em décadas de pesquisa, ele afirma categoricamente que a inteligência é uma propriedade dos organismos biológicos, e não pode ser reproduzida por máquinas.

Em entrevista ao Podcast ONU News, ele criticou o termo “inteligência artificial”, ou IA, dizendo que a tecnologia não é inteligente, pois não deriva de um processo de seleção natural nem artificial, porque precisa de milhões de pessoas trabalhando para mantê-la funcionando.

Uso de inteligência artifical pode reduzir capacidade cognitiva humana, alerta Miguel Nicolelis

Redução da inteligência humana

Nicolelis acredita que não há risco de as máquinas pensarem como seres humanos, mas sim das pessoas passarem a pensar como máquinas.

“O meu receio maior não é a inteligência artificial criar superinteligência. Eu acho que isso é só hype comercial que alguns empreendedores usam para aumentar a valorização das suas empresas sem fundamento científico nenhum. O meu grande receio, como a mente humana, o cérebro humano é um grande camaleão e ele se adapta a toda sorte de contextos e circunstâncias que o mundo lhe oferece para sobreviver, se o nosso mundo se transformar todo aqui fora e viver sob a lógica digital, o cérebro humano vai se adaptar a ele. Então nós vamos reduzir a nossa capacidade cognitiva, intelectual e inteligência ao nível dos sistemas digitais. É por isso que eu posso dizer que nós estamos caminhando rapidamente para criar milhões de zumbis digitais”.

Invasão de artigos científicos falsos

O especialista alerta que o uso abusivo de telas e agentes de inteligência artificial estão alterando as propriedades cognitivas do ser humano. Ele também destacou preocupação com a difusão de informações incorretas, pois as ferramentas de IA são “treinadas em dados não confiáveis da internet, cometem erros e alucinam”.

“Até a ciência está sendo invadida por esses fakes. Nós estamos vendo uma explosão de artigos falsos sendo publicados, um número explosivo de descobertas que não existem, que são relatadas como se fossem experimentos reais que foram realizados, mas não são, porque existe uma pressão muito grande de se publicar achados. Mas essa pressão agora está se transformando numa indústria de publicação de resultados científicos falsos. E nós, que trabalhamos como revisores desses artigos para as revistas, é uma dificuldade muito grande hoje em dia, descobrir o que é real e o que não é”.

Segundo Nicolelis, estamos vivendo o primeiro momento da espécie humana onde existe toda uma narrativa “aleatória, virtual e falsa”, transmitida como se fosse verdade.

Estão em discussão diretrizes para regulamentação de plataformas digitais

Trabalho precário e violação de propriedade intelectual

Sobre os esforços da ONU para regular a nova tecnologia, ele sinalizou áreas que merecem atenção especial. Uma delas é o uso de propriedade intelectual sem nenhum tipo de licenciamento ou pagamento para artistas e cientistas.

“Um dia desses me mandaram um link e eu descobri que meus livros tinham sido usados para treinar um certo algoritmo sem que eu soubesse ou tivesse a menor notícia. Então, trabalhos que custaram 40 anos da minha vida para serem publicados estavam agora sendo absorvidos e usados para realizar treinamento de modelos LLMs (grandes modelos de linguagem, na sigla em inglês) sem que eu nem soubesse”.

Para Nicolelis, outra área que requer regulação urgente é o trabalho por trás da mineração de dados usados para treinar as ferramentas de IA. Essa função envolve exposição a imagens extremamente difíceis de tolerar, com a finalidade de filtrar e remover conteúdo impróprio.

“Para esses modelos gigantescos poderem funcionar, milhões de pessoas no mundo são empregadas precariamente, sendo pagas centavos por hora de trabalho, sem regimes estáveis de emprego, sem nenhuma garantia de estabilidade. E as empresas lucram bilhões de dólares empregando pessoas em regiões de refugiados na África, na América do Sul, em países de grau de extrema pobreza, onde as pessoas têm que aceitar qualquer tipo de condição de trabalho”.

O cientista comparou o nível de exploração observado atualmente com o início da Revolução Industrial, quando até crianças eram empregadas para trabalhar nos teares a vapor da indústria de tecelagem.

Um servidor de data center é um computador poderoso e especializado

Um servidor de data center é um computador poderoso e especializado

Meta sobre doenças que afetam 43% da humanidade

O brasileiro foi pioneiro no estudo de redes neurais biológicas e na criação de interfaces cérebro-máquina. A inovação permitiu tanto animais como seres humanos conectarem seus cérebros diretamente com braços ou pernas robóticas, avatares virtuais, equipamentos eletrônicos e computadores.

Essa abordagem torna possível fazer as pessoas voltarem a andar depois de lesões medulares. Nicolelis agora quer desenvolver terapias para doenças neurológicas como Parkinson, epilepsia e Alzheimer.

As 37 doenças neurológicas mais importantes afetam cerca de 3,4 bilhões de pessoas ou, seja 43% da humanidade.

Exoesqueleto criado pelo neurocientista Miguel Nicolelis

Miguel Nicolelis/Arquivo Pessoal

Exoesqueleto criado pelo neurocientista Miguel Nicolelis

A meta do neurocientista é alcançar até 1 bilhão de pessoas que hoje não tem nenhuma alternativa terapêutica eficiente.

Ele pretende criar uma rede de institutos de pesquisa e hospitais de excelência ao redor do mundo para implementar novas terapias baseadas em conexões do cérebro com artefatos eletrônicos, computacionais ou mecânicos.

Segundo o especialista, essa é uma abordagem não-invasiva, sem necessidade de implantes cerebrais e sem efeitos colaterais.

Nicolelis acredita que esse possa ser um caminho seguro, barato e escalável para tratar múltiplas doenças do cérebro, tanto neurológicas quanto psiquiátricas.

*Felipe de Carvalho é redator da ONU News Português.

 

Confira a íntegra da entrevista com o médico e neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis:

ONU News: Nosso tema hoje é inteligência artificial, mas eu gostaria de começar por essa primeira palavra “inteligência” e seu grande protagonista, o cérebro humano, que tem sido o foco das suas pesquisas por mais de 30 anos. Quais foram as grandes descobertas que o senhor fez sobre o funcionamento do cérebro humano?

Miguel Nicolelis: Bom, na verdade comecei esse trabalho em 89, quando eu saí do Brasil para os Estados Unidos para desenvolver uma nova tecnologia de registro da atividade elétrica de células do cérebro. A gente os chama de neurônios. Na época, só era possível registrar uma célula de cada vez em animais de experimentação, por exemplo. E eu, junto com meu orientador, desenvolvemos a primeira técnica para registrar dezenas ou centenas de neurônios ao mesmo tempo. Ou seja, nós começamos a ver o cérebro como um todo e estudar redes neurais reais, não as artificiais que usam o nome do cérebro em vão, na minha opinião, porque é completamente diferente como o cérebro funciona, dos modelos hoje de deep learning ou de redes neurais artificiais. E com isso nós conseguimos descrever ao longo de 20 anos toda sorte de propriedades de circuitos neurais que não eram conhecidas. E quando nós começamos a entender melhor como é que essas redes neurais biológicas funcionavam, nós criamos um novo paradigma chamado interface cérebro-máquina, que hoje tem dois nomes: Brain-Machine Interface ou Brain-Computing Interface. Na realidade a interface cérebro-computador é um tipo específico da interface cérebro-máquina que nós criamos, que permitiu tanto animais como seres humanos conectarem seus cérebros diretamente com braços ou pernas robóticas, avatares virtuais, equipamentos eletrônicos, computadores, por exemplo. Até mesmo os nossos primeiros experimentos com macacos, a gente permitiu que os macacos caminhassem dentro de um carro elétrico, uma cadeira de rodas elétrica que era comandada diretamente pelo cérebro. Então, basicamente toda essa toda essa área de neurotecnologia voltada às interfaces cérebro-máquina surgiram nesses 25 anos de estudo de redes neurais biológicas. Foi só por isso que essa área surgiu e, mais recentemente, nós começamos a transferir esse conhecimento para usos clínicos. Nos últimos dez anos, nós estamos tentando desenvolver toda sorte de terapias para pacientes com lesão medular, doença de Parkinson, epilepsia crônica. Na sua totalidade, se você somar todas as 37 doenças neurológicas mais importantes, elas afetam por volta de 3,4 bilhões de pessoas, que é 43% da humanidade. Então, as interfaces cérebro máquinas hoje, elas são já alternativas terapêuticas para uma série de doenças. Mas isso tudo só surgiu porque nós começamos a estudar redes neurais em ratinhos há 40 anos atrás.

O robô Ameca participou do AI for Good Global Summit, em Genebra, Suíça, em julho de 2023.

O robô Ameca participou do AI for Good Global Summit, em Genebra, Suíça, em julho de 2023.

ONU News: Nós vivemos hoje uma explosão da inteligência artificial, com perspectivas de reproduzir ou mesmo superar a capacidade humana de pensamento. Ao mesmo tempo, os seres humanos estão imersos em ambientes digitais que muitas vezes causam problemas de interação social, saúde mental e desconexão com a realidade. O que o senhor acha mais provável e perigoso, as máquinas começarem a pensar como seres humanos ou os seres humanos passarem a pensar como máquinas?

Miguel Nicolelis: Como você já deve saber, eu sou extremamente crítico dessa área. Eu particularmente não gosto do nome que foi dado desde os anos 50 à Inteligência artificial, porque a inteligência é uma propriedade dos organismos. Ela é uma propriedade emergente que surgiu através do processo de seleção natural para os organismos otimizarem as suas chances de sobrevivência num mundo em fluxo e na sua interação com outros organismos, sejam da mesma espécie ou de outras espécies. Então eu gosto de dizer nas minhas aulas que esse é um nome inapropriado, porque ela não é nem inteligente nem artificial. Ela não é artificial porque ela precisa de milhões de pessoas trabalhando para mantê-la funcionando, como todos nós sabemos. Eu publiquei vários artigos, inclusive um livro detalhando, junto com um grande colega meu, o matemático suíço, o ciclo real, da impossibilidade da inteligência social reproduzir o humano, porque o cérebro humano não funciona como uma máquina digital. Se qualquer coisa, ele funciona em analógico e o sistema digital, ele pode aproximar o sistema analógico, mas ele não pode substituir ou ficar mais complexo. Então, o meu receio maior não é a inteligência artificial criar superinteligência. Eu acho que isso é só hype comercial que alguns empreendedores usam para aumentar a valorização das suas empresas, sem fundamento científico nenhum. O meu grande receio, como a mente humana, o cérebro humano é um grande camaleão e ele se adapta a toda sorte de contextos e circunstâncias que o mundo lhe oferece para sobreviver, se o nosso mundo se transformar todo aqui fora, todo num mundo digital e viver sob a lógica digital, o cérebro humano vai se adaptar a ele. Então nós vamos reduzir a nossa capacidade cognitiva, intelectual e inteligência ao nível dos sistemas digitais. É por isso que eu posso dizer que nós estamos caminhando rapidamente para criar milhões de zumbis digitais, porque a nossa inteligência é muito mais diversificada, criativa, variada do que o que é produzido numa máquina digital.

Todavia, se a regra do jogo for se comportar como um computador digital, o cérebro humano vai se adaptar porque ele é extremamente plástico e tende a assimilar o modo de funcionamento do mundo externo para tentar otimizar a sua sobrevivência. Então ele é tão inteligente que ele é capaz de reduzir a própria inteligência para se adaptar ao que nós estamos produzindo em termos de tecnologia. E já está acontecendo. Basta você ver os estudos que estão surgindo, mostrando que o uso abusivo de telas, o uso abusivo do dos agentes de inteligência artificial começam a alterar as propriedades cognitivas e intelectuais do ser humano. Já existem vários estudos demonstrando isso, inclusive um recente de um grupo do MIT que mostrou um grau de desconexão cerebral importantíssimo, se você usa continuamente essas ferramentas, então o meu maior medo é que o ser humano emburrece e se transforme num zumbi digital.

ONU News: A ONU está trabalhando ativamente para construir e estabelecer uma regulamentação global sobre inteligência artificial. Na opinião do senhor, quais são as medidas de regulação mais urgentes que precisam acontecer em torno dessa tecnologia?

Miguel Nicolelis: Bom, existem várias frentes, várias variáveis que precisam ser reguladas. Uma delas é o uso de trabalho para fazer o labelling dos dados, para fazer a classificação dos dados para esses modelos gigantescos poderem funcionar. Milhões de pessoas no mundo são empregadas precariamente, sendo pagas centavos por hora de trabalho, sem regimes estáveis de emprego, sem nenhuma garantia de estabilidade. E as empresas lucram bilhões de dólares empregando pessoas em regiões de refugiados, na África, na América do Sul, em países de grau de extrema pobreza, onde as pessoas têm que aceitar qualquer tipo de condição de trabalho. E essas empresas hoje valem bilhões de dólares. Uma delas acabou de ser vendida por U$15 bilhões, enquanto ela pagava 10, 20, 30 centavos por hora de trabalho para pessoas serem expostas a imagens extremamente difíceis de tolerar porque você tem que fazer a curadoria das imagens ou você tinha que classificar objetos, imagens ou remover conteúdo impróprio. E esses trabalhadores mundo afora são explorados num grau que lembra o início da Revolução Industrial, quando até crianças eram empregadas na Inglaterra para trabalhar nos teares à vapor da indústria de tecelagem. Nós estamos vendo a mesma coisa acontecer no mundo todo, numa escala muito maior. Então, essa é uma das áreas talvez mais sensíveis.

A outra é o uso de propriedade intelectual, sem nenhum tipo de licenciamento, sem nenhum tipo de pagamento para artistas e cientistas. Um dia desses me mandaram um link e eu descobri que meus livros tinham sido usados para treinar um certo algoritmo sem que eu soubesse ou tivesse a menor notícia. Então, trabalhos que custaram 40 anos da minha vida para serem publicados estavam agora sendo absorvidos e usados para realizar treinamento de modelos LLMS sem que eu nem soubesse. Então, a falta de qualquer regulamentação do uso da propriedade intelectual humana é gravíssima. Ela tem que ser regulamentada quase que para ontem, porque nós estamos falando de milhões de intelectuais, artistas, toda sorte de trabalhadores intelectuais cujo trabalho está sendo usado para gerar lucros bilionários sem nenhum tipo de retorno. Então nós estamos vendo o desaparecimento na Inglaterra de pintores, poetas e no mundo todo. Nos Estados Unidos, até mesmo aqui na América Latina, você vê. Recentemente, por exemplo, nós tivemos nos Estados Unidos a maior greve de Hollywood em 60 anos, porque as imagens de atores coadjuvantes estavam sendo usadas para produzir novos filmes sem que eles recebessem nenhum tipo de pagamento por participar virtualmente, vamos dizer assim, desses filmes. Então, essas são áreas vitais, na minha opinião, as primeiras.

E outra são todas as informações incorretas, sem nenhuma base científica, que são difundidas por esses empresários da área que dizem que o ser humano vai virar obsoleto ou que nós vamos desempregar todo mundo, que a automação vai ser total, criando uma atmosfera de pavor e de quase paranoia hoje em dia. Basta ver o que está acontecendo nas áreas de jornalismo, por exemplo, onde o desemprego aumentou dramaticamente por causa do uso de inteligência digital para produzir notícias, sendo que os erros são enormes porque esses modelos não são perfeitos. Pelo contrário, eles cometem erros absurdos porque eles são treinados em dados não confiáveis da internet e eles alucinam. Eles produzem coisas que não têm o menor sentido. Tanto é que recentemente a Apple teve que pedir desculpas, por exemplo, por produzir notícias que não tinham o menor sentido porque o algoritmo que eles estavam usando falhou. Então, essas são as três áreas, na minha opinião, que requerem uma regulamentação para ontem, porque o dano que elas estão criando é muito grande ao redor do mundo.

Mulher usa o celular

Mulher usa o celular

ONU News: O senhor tem manifestado preocupação com a proliferação de fake news, na época da pandemia de Covid-19 o senhor teve vários posicionamentos sobre isso. Qual o perigo que o senhor vê no papel da inteligência artificial na proliferação da desinformação?

Miguel Nicolelis: E nós vimos isso muito claramente na pandemia. Eu fui um dos coordenadores do Comitê de Combate ao Corona Vírus do Nordeste aqui do Brasil. Foi o maior comitê científico do país. E nós começamos a lidar diariamente, desde o começo da pandemia, em 2020, com uma enxurrada de notícias falsas. Uma enxurrada tanto em relação ao vírus – que era o vírus? De onde ele vinha? Como ele foi produzido? – até quando as vacinas surgiram, das informações absurdas sobre que as vacinas tinham microchip dentro delas, ou que elas iam fazer todos virarem escravos digitais de empresas. Ou seja, nós criamos quase que uma divisão para desmentir fake news diariamente e de lá para cá isso só piorou.

Nós vivemos a era da pós verdade. Nós já estamos vivendo um momento em que a gente não sabe mais o que é verdade a não ser se você for uma testemunha ocular do fato, porque você pode criar vídeos, imagens e textos totalmente falsos, que soam verdadeiros, que parecem ser verdadeiros, mas que criam uma narrativa completamente absurda. Então, essa é uma outra área inclusive de regulamentação, porque nós estamos perdendo o pé do que é concreto, tangível e vivendo o primeiro momento da nossa espécie, onde há toda uma narrativa aleatória, virtual e falsa, transmitida como se fosse verdade. Então as pessoas começam a desconfiar de tudo, começam a desconfiar das instituições, começam a desconfiar da democracia, das eleições. Até a ciência está sendo invadida por esses deepfakes. Nós estamos vendo uma explosão de artigos falsos sendo publicados, um número explosivo de descobertas que não existem, que são relatadas como se fossem experimentos reais que foram realizados, mas não são, porque existe uma pressão muito grande de se publicar achados. Mas essa pressão agora está se transformando numa indústria de publicação de resultados científicos falsos. E nós, que trabalhamos como revisores desses artigos para as revistas, é uma dificuldade muito grande hoje em dia, descobrir o que é real e o que não é. Você tem que ter um cuidado muito grande, tanto porque alguns desses programas que foram criados para produção de artigos científicos criam citações de outros artigos que não existem. Os nomes são verdadeiros. Os cientistas que estão lá são de nomes que a gente conhece, mas quando você vai ver o que é citado, não existe. O trabalho nunca foi feito, nunca foi publicado, mas está lá citado como uma referência. Então esses problemas estão se agravando rapidamente. A era da pós verdade pode trazer consequências dramáticas não só para nós, adultos, mas também para as nossas crianças, que estão sendo bombardeadas com informações, por exemplo, que não adianta ir pra escola, pra que ir pra universidade se você pode ganhar milhões sendo um empreendedor? Ou que a ciência atingiu o máximo que ela pode fazer. Existem investidores americanos que gostam de dizer que a ciência não vai mais produzir nenhum tipo de breakthrough, nenhum tipo de grande descoberta, que tudo tem que ser feito no mundo dos negócios. Mas a indústria não investe em ciência básica. Se as universidades do mundo afora não puderem trabalhar e produzir ciência básica, como eu fiz por 40 anosa, as grandes aplicações da ciência no nosso cotidiano vão desaparecer, porque nenhuma empresa quer investir bilhões de dólares durante 30 anos para só depois ver o que vai sair de concreto dessa pesquisa.

ONU News: O senhor poderia compartilhar sobre como suas descobertas estão ajudando pessoas com paralisia, com doenças como Parkison, epilepsia? Como o senhor vê nos próximos 10 anos as aplicações em saúde das suas pesquisas sobre o funcionamento do cérebro e as interfaces cérebro máquina?

Miguel Nicolelis: Logo depois da parte mais aguda da pandemia, quando era final de 2022, quando a situação estava melhorando devido às vacinas, que fizeram uma diferença brutal, eu lancei um novo projeto chamado “Treat One Billion”, cuja meta é criar uma rede de institutos de pesquisa e hospitais ao redor do mundo para tentar implementar essas novas terapias baseadas em conexões do cérebro com artefatos eletrônicos, computacionais ou mecânicos, não invasivo, sem nenhuma necessidade de implantes cerebrais. Por quê? Porque apesar de ter criado esses implantes cerebrais na minha carreira, ter sido o primeiro laboratório a ter demonstrado que esses implantes corticais poderiam ser usados para controlar robôs ou toda sorte de máquinas à distância, o que eu descobri nos últimos dez anos é que os métodos não invasivos da mesma tecnologia podem ser usados para tratar uma série enorme de patologias. Boa parte daquelas 37 doenças que eu mencionei no começo, que hoje respondem por 3,4 bilhões de pacientes neurológicos no mundo, por volta de 1 bilhão desses pacientes poderiam tirar vantagem dessas novas tecnologias. Porque elas são seguras. Elas não têm efeito colateral nenhum. Elas são eficientes, como você mesmo mencionou, nós já estamos demonstrando há anos pessoas que voltaram a andar depois de terem lesões medulares, tanto no Brasil como fora do Brasil. E nós vamos publicar agora um estudo clínico internacional reproduzindo tudo o que nós fizemos no Brasil, fora do Brasil. E mostrando que pessoas não tinham esperança nenhuma de andar, voltaram.

Paciente em uma cadeira de rodas

Paciente em uma cadeira de rodas

Nós acreditamos que esse projeto “Treat One Billion” poderia levar para o mundo essa tecnologia segura, eficiente, barata, porque ela é muito mais barata que qualquer implante cerebral. E ela é escalável por causa dessas três características anteriores. Ela pode atingir centenas de milhões de pessoas ou até 1 bilhão de pessoas que hoje não tem nenhuma alternativa terapêutica eficiente. Como você mencionou, a doença de Parkinson, diferentes tipos de demência, doença de Alzheimer, epilepsia crônica, depressão crônica, que é um problema gravíssimo ao redor do mundo. Eu acredito que os nossos resultados demonstram que nós criamos uma abordagem genérica que pode ser usada para múltiplas doenças do cérebro, tanto neurológicas quanto psiquiátricas.

É a minha tentativa e essa é minha missão de vida nesse momento: tentar arregimentar centros de excelência ao redor do mundo para que a gente possa transferir todo esse conhecimento, toda essa tecnologia para o tratamento de pessoas, inclusive através da criação do maior hospital do cérebro virtual da história, porque ele não seria localizado em nenhum lugar específico. Ele seria distribuído pelo mundo, com hubs regionais que poderiam atuar com pacientes remotamente até nas casas dos pacientes. Ou seja, o paciente precisaria vir para o hospital para ser tratado. Ele poderia ser tratado com essa tecnologia no próprio ambiente domiciliar, o que traz grandes vantagens para a recuperação do paciente, porque ele está no meio familiar com seus entes queridos e ele pode fazer esse treinamento na sua própria casa.

ONU News: Alguma mensagem final?

Miguel Nicolelis: Eu queria agradecer também o convite. Foi um prazer enorme. E dizer que eu acho que é importante para todos os ouvintes terem em mente que a sua capacidade intelectual, tanto individual quanto coletiva, da espécie humana, é muito maior do que qualquer programa de computação e qualquer computador jamais inventado. Não importa quantos bilhões de chips você ponha junto, eles jamais vão superar a capacidade do ser humano em atuar individualmente e coletivamente para construir a condição humana. Então, para as pessoas ficarem tranquilas e acreditarem em si mesmas, porque nenhuma máquina vai nos substituir.



Fonte ==> United Nations

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