Transição do setor elétrico é responsabilidade de todos – 09/09/2025 – Joisa Dutra

A imagem mostra uma fileira de turbinas eólicas em um campo aberto, com um céu azul e algumas nuvens ao fundo. As turbinas estão alinhadas em uma linha reta, com suas lâminas girando ao vento.

Em tempos de mudanças climáticas, geopolíticas e geoeconômicas, proliferam discussões: vivemos uma transição, transformação ou mera “adição” energética? Em seus livros, Vaclav Smil lembra que transições são a regra — como o escocês do rótulo da Johnnie Walker: we keep walking. Caminhamos para onde?

Vivemos, sim, a transição para uma economia de baixo carbono. É um processo bruto, em que novos entrantes renováveis disputam espaço com fósseis estabelecidos. Trata-se de mudança tecnológica com atritos, desajustes e deslocamento de incumbentes —inclusive empresas de petróleo e gás que ajudaram a construir a sociedade moderna e ainda geram valor, emprego e inovação.

Nessa transição, eólicas e solares chegaram com promessas de implementação mais simples. Tornaram-se competitivas, ganharam mercado e passaram a disputar (todo) o espaço. Mas as dores do crescimento não tardaram: aqui, elas atendem pelo nome em inglês —curtailment— o corte da geração por restrições de rede ou critérios operativos de segurança. Num primeiro momento, atingiu solar, eólica e até hidrelétricas. Levantamento da FSET Consultoria indica que, só em agosto de 2025, os cortes chegaram a 22% da geração eólica e 37% da solar.

O apetite por energia mais barata e “verde” levou grandes consumidores à autoprodução: ao contratar diretamente e assumir participação em usinas, capturam isenções e ganhos ambientais. Quem seria contra pagar menos e ainda reduzir pegada de carbono perante clientes e investidores?

O problema surge quando a expansão das redes não acompanha a velocidade da geração. O descompasso já atingiu a Faria Lima e, mais recentemente, os próprios autoprodutores: cortes de despacho, volatilidade de preços e custos inesperados.

Prêmio Nobel em economia, Ronald Coase, ensinou que propriedade é definida por quem fica com os retornos residuais. Depois de pagos os custos, os lucros — ou prejuízos — recaem sobre o proprietário. Na era do curtailment, parte dos consumidores-sócios descobriu que esse retorno pode ser negativo: chamadas de capital, rateios de perdas e disputas contratuais sobre quem paga a conta.

Na Europa, um dos casos mais emblemáticos é a Escócia: a compensação paga às fazendas eólicas cobre parte relevante da energia programada e não gerada. O problema decorre do descompasso entre localização das usinas eólicas e mercado consumidor. O curtailment já chega a quase 40% da produção planejada, e a tendência é de piora. O operador alerta: compensar é remendo, não solução. A resposta estrutural é expandir redes – que tem custos, é claro. Outro sintoma é a multiplicação de preços negativos. Em 2024, a Alemanha registrou 459 horas com preços negativos de eletricidade. Fenômeno crescente, observado em outros países europeus e norte-americanos. Na China, o problema já foi e voltou, com reforços de transmissão e regras regionais. Onde há regras claras de alocação de risco, aparecem sinais para investir em rede e flexibilidade. Onde não há, destrói-se valor.

E no Brasil? As medidas recentes — incluindo a MP 1.300 (tarifa social, abertura do mercado) e a discussão da MP 1.304 — avançam em pontos relevantes, mas não enfrentam três nós centrais: (i) curtailment e compensação por indisponibilidade de rede; (ii) armazenamento e flexibilidade como infraestrutura de sistema; (iii) sinais locacionais e preços que orientem onde e como expandir geração e transmissão. O marco regulatório de baterias segue pendente. Sem ele, deixamos dinheiro na mesa: pagamos pela energia “verde” e depois pagamos para não usá-la.

No limite, quem arca com riscos excessivos de um quadro setorial desarticulado? Consumidores cativos e livres? Autoprodutores? Contribuintes? Sem desenho institucional que distribua riscos e recompensas de maneira previsível, a resposta prática tem sido: todos e ninguém. E quando a propriedade é difusa e as regras são opacas, a conta cresce e a transição perde legitimidade.

É preciso pragmatismo. Uma agenda mínima poderia incluir: um marco ágil para investimentos em armazenamento (baterias e usinas reversíveis); melhoria dos sinais locacionais para geração e grandes cargas (os queridinhos data centers), reduzindo projetos em áreas saturadas e premiando conexão onde há folga de rede; e regras de curtailment e compensação transparentes, com métricas públicas de indisponibilidade e partilha de riscos proporcional ao benefício.

Volto ao tema porque tira o sono — de investidores, de empresas vocacionadas a liderar a transição e, sobretudo, dos usuários que não controlam esses riscos. A quem pertence o setor elétrico? Se a resposta não for clara — que pertence à sociedade, a quem cria e preserva valor coletivo — corremos o risco de socializar perdas e privatizar frustrações. A transição só será legítima se for boa economia para todos — inclusive quando nossos ventos sopram forte e o sol brilha muito.



Fonte ==> Folha SP

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *