Nos últimos dias, perdemos Angela Ro Ro e Luis Fernando Verissimo (LFV), que sacolejaram a cultura no fim da ditadura. As diferenças eram óbvias. As semelhanças, nem tanto.
LFV era circunspecto, discreto, quase mudo. Angela parecia conduzir a fuzarca.
Ambos despontaram no fim dos anos 1970. Estouraram na década seguinte. Testaram os limites da censura e souberam pressentir os estertores do fim do arbítrio muito antes da queda do regime. Desafiaram os limites da liberdade de expressão.
Na contramão do autoritarismo e da violência, LFV exerceu o deboche cerebral no teclado. Angela exultava a irreverência no palco e nas letras de suas músicas.
Eram tempos carentes de liberdade e de reencontros.
Houve o retorno de Rogeria, “travesti da família brasileira”, que nos encantava pela graça e inteligência.
Houve a recepção dos exilados, aqueles que sobreviveram, que nos comoviam pelas histórias de bravura e de dor pela tortura.
E houve o resgate de Angela Ro Ro. Não sei muito bem de onde. Mas sei do barulho que seu retorno ocasionou.
Eu, ainda adolescente, frequentava a região conhecida como Baixo Gávea, sobrinho do Baixo Leblon na cidade do Rio de Janeiro.
Havia um ritual de camaradagem. Os grupos se alongavam como famílias de séculos anteriores, em que o comum era dezenas de irmãos, primos e aconchegados. Carecíamos de heróis.
O retorno de Angela Ro Ro provocou um burburinho.
Estávamos, os quase adultos, no Baixo Gávea, conversando, se abraçando, namorando. De repente, aparece a moça de dentes atrapalhados.
O tempo para. Todos ouvimos, ou acreditamos que ouvimos, sua gargalhada estrondosa. “Amor, meu grande amor, não chegue na hora marcada… Só dure o tempo que mereça… E quando me quiser, que seja de qualquer maneira”.
Uma amiga ao seu lado, muitos outros que a cumprimentam. E ela seguia como uma princesa Margareth. Acolhedora, deliciosamente barulhenta, levemente acima do tom.
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Cássia Eller, Jorginho Guinle e tantos outros foram cedo demais. O tempo foi um pouco mais generoso com Rogeria, Angela Ro Ro ou LFV. Todos comungavam do país que prometia liberdade em meio a arte que congregava, na contramão da ditadura que violentara.
Angela parecia se entrelaçar com o espírito da época. Ela sacudia os preconceitos e nos acolhia com o deboche e a irreverência que a época prometia.
LFV, por sua vez, fez parte do nosso cotidiano por décadas e bagunçou o coreto. Seu texto inesperado desanuviou manhãs desesperançadas.
O tempo tem o mau hábito de continuar a passar. A contagem começa.
LFV era da geração dos meus pais. Os filhos podem não saber, mas suas “esquisitices”, o silêncio famoso, a sua lentidão de marmota, salvaram algumas crianças atrapalhadas.
O filho de Érico Verissimo quase não falava. No máximo, tocava saxofone. O pai, homem cioso e cuidadoso com a escrita e os afazeres, preocupado com o futuro do filho, arrumou-lhe emprego na área de comunicação. A piada estava pronta.
Não é que o filho se revelou LFV! O rapaz retraído parecia incapaz de vida autônoma. Então, não era bem assim. Ele sabia do ofício. Havia esperança para os demais.
Minha avó e minha tia contavam-me do desfecho delicioso e inesperado de LFV. As famílias eram próximas e trocavam histórias. O jovem, quase mudo, sabia se comunicar, escrever, surpreender. O talento inesperado e encantador.
LFV, moço arredondado, com ar de burocrata encafifado, herdou a casa, a biblioteca e uma versão inesperada do talento do pai. O épico tornou-se graça e delicadeza.
O Continente de Érico, com a compostura de Ana Terra, metamorfoseou-se no “armário” de uma galeria de Copacabana. Ambos com a ironia de “Incidente em Antares”, o último, e surpreendente, romance de seu pai.
“Eu sou assim. Duro… Acho que todos deviam ter uma noiva no Grajaú, principalmente os homens casados… Mort. Ed Mort. É o que está escrito na plaqueta nova que mandei botar na minha porta. Roubaram a outra. Ocupo uma espécie de armário numa galeria de Copacabana, junto com um telefone mudo, 17 baratas e um ratão albino. Entre uma escola de cabeleireiros e uma loja de carimbos.”
O divertido era que as histórias marginais ao enredo principal não terminavam. A loja de carimbos antes fora uma pastelaria. Fechada pela prefeitura. Não se sabia bem qual era o recheio dos pastéis.
O homem conhecido pelo silêncio enfeitava o texto com doçura interminável.
Ele escrevia assim: “Tinha os seios como eu gosto, um de cada lado”.
Esse era LFV. Convidando à gargalhada. Com graça e gentileza, o moço, que pouco falava, seduzia no primeiro encontro.
A vida nos surpreende, como o seu texto sugeria com inteligência elegante.
LFV era o mestre do desenho seco. As cobras olham para o lado, quando comentam o contrário do que esperamos.
Era autor de frases simples, que iam em uma direção, mas seus desvios resultavam no argumento inesperado. Delicado, gentil e surpreendente.
LFV partiu.
Angela Ro Ro se foi antes do esperado. Mas assim é a vida.
A despedida começa antes do esperado porque acreditávamos que não haveria despedida.
Nem sempre estaremos do lado que segura o caixão.
Resta, contudo, a canção inesquecível com a voz grave de Angela Ro Ro; ficam à mão os textos deliciosos de LFV. Nem tudo passa.
Fonte ==> Folha SP