‘Selvagem’: Felipe Haiut transforma memórias em ritual – 30/09/2025 – Mise-en-scène

'Selvagem': Felipe Haiut transforma memórias em ritual - 30/09/2025 - Mise-en-scène

O espetáculo solo “Selvagem”, concebido e interpretado por Felipe Haiut sob a direção de Débora Lamm, se coloca como um trabalho fundamental no gênero autobiográfico ao rejeitar facilismos narrativos. A peça constrói um ritual de investigação da memória, onde o passado emerge de forma não linear, em fragmentos que espelham o próprio processo de rememoração.

A narrativa centra-se na figura da “criança viada” – termo ressignificado com orgulho no contexto do espetáculo – e sua jornada de sobrevivência em um ambiente hostil. Haiut traduz em gestos precisos as marcas da violência que sofreu em casa e no ambiente escolar, bem como os lampejos de liberdade que aconteciam aqui e ali. Seu corpo torna-se o território onde se trava a batalha entre a repressão e o instinto “selvagem” do título.

A direção de Débora Lamm demonstra notável contenção, utilizando uma cenografia essencial onde objetos cotidianos ganham carga poética. Dois momentos musicais destacam-se, um pela diversão e outro pelo encantamento: a participação de Danilo Martim e Walmick de Holanda como as “Sheilas” na irreverente performance de “Coco Melado”, que injeta no espetáculo uma energia queer contagiante; e a comovente interpretação de “Chorando se Foi” por Diego Moraes, que eleva o clássico a uma dimensão quase ritualística.

“Selvagem” impressiona pela honestidade com que escava suas próprias feridas, sem cair no melodrama. O resultado é um trabalho de rara autenticidade, que transforma a experiência particular em potência cênica universal, afirmando a resistência e a beleza complexa de existir à margem dos padrões.

Nota: as participações especiais mudam a cada apresentação.

Três perguntas para…

… Felipe Haiut

O termo “criança viada” é usado no espetáculo de uma forma que parece resgatar e empoderar um estigma. Como foi o processo de ressignificar essa e possivelmente outras palavras que foram usadas como arma contra você no passado?

Eu fui uma criança que cresceu muito marcada — principalmente pelos adultos. E acho importante começar daí, porque o que significa ser chamado de “viado” aos quatro anos de idade? Eu estava apenas experimentando o mundo, tentando entender o que era brincar, dançar, existir, e o tempo inteiro os adultos me adultizavam. Eles me tiravam o direito de infância, dizendo o que eu podia ou não podia ser. Meu corpo era constantemente policiado: não podia rebolar, não podia desmunhecar, porque esses gestos eram considerados femininos, por exemplo.

Esse termo, “criança viada”, que no passado foi usado como ofensa contra a minha criança, eu trago no espetáculo como forma de orgulho. Quando eu era pequeno, tudo o que eu queria era não ser eu mesmo — e hoje o maior prazer da minha vida é justamente celebrar quem eu sou.

Mas é importante dizer: quando eu uso essa expressão, eu estou falando da minha criança, daquela que ouviu repetidamente que “não era homem”. O termo que eu uso para falar dessas infâncias dissidentes é “selvagem” — porque selvagem é o que ainda não foi totalmente moldado pela cultura normativa. É o estado em que a criança já é um ser no mundo, mas ainda não recebeu a cartilha dos papéis que se espera dela. Por isso, quando falo de criança selvagem, falo também de um manifesto: deixar as crianças brincarem. Brincar é como a criança descobre o mundo e a si mesma. Quando a gente não permite que ela brinque de boneca, de futebol, de luta ou de dança, estamos impedindo que ela se conheça.

Como foi o processo de trabalhar com Débora Lamm para desmontar e remontar suas próprias memórias em cena? Até que ponto essa visão externa foi crucial para dar forma artística à sua experiência íntima?

A Débora Lamm é uma das pessoas mais generosas com quem já trabalhei. Ela foi puro afeto e cuidado durante todo o processo, me pegou pela mão, navegamos juntos pelo trauma e ela sonhou junto comigo esse projeto. “Selvagem” é um espetáculo independente, ensaiamos muitas vezes na sala da casa dela, do jeito que era possível. Desde o início, nossa ideia era criar uma peça amorosa, que convidasse o público a olhar para essas experiências sem julgamento, abrindo espaço para empatia.

O mais bonito é que a Débora também foi uma criança selvagem, e isso fez com que o processo não fosse apenas sobre as minhas memórias, mas sobre um encontro. Aos poucos, fui descobrindo a força da comunidade, de me reconhecer no outro. Perceber que aquelas histórias que me fizeram sofrer tanto, e que eu achava que eram só minhas, estavam sendo vividas em silêncio por tantas outras crianças. Aquilo que eu fazia trancado no quarto — dançar, celebrar — tanta gente também fazia.

Débora trouxe seu próprio olhar, a experiência de uma criança selvagem, com vivências diferentes das minhas, mas que se complementam. Essa troca foi fundamental para dar forma artística à peça, porque me fez entender que não se tratava apenas da minha biografia, mas de uma história que estava a serviço. Hoje vejo que o espetáculo me ajudou a construir uma comunidade de afeto, uma manada de selvagens.

Após tantas apresentações, o que as reações do público, especialmente de outras pessoas queer, revelaram para você sobre a peça? Houve algum retorno que te marcou ou que fez você rever algum aspecto do espetáculo?

Acho que o mais bonito do espetáculo é ver as pessoas mergulhando dentro de si. Durante a peça, dá para perceber quando o público atravessa para esse outro espaço-tempo, quando cada um começa a resgatar memórias muito íntimas. É como se elas acessassem algo raro e precioso.

No fim, os relatos são muito potentes. O que mais me marcou foi perceber que eu nunca estive só — que nós nunca estivemos só. Existiram muitas outras crianças passando pelas mesmas experiências que eu. Isso traz um sentido de comunidade muito forte, a noção de que fazemos parte de uma história coletiva.

O teatro tem essa beleza: quando as pessoas sentem, elas se transformam. Eu posso explicar mil vezes, de forma racional, o que é a lgbtfobia. Mas quando alguém vai ao teatro e vive aquela experiência pelo sentir, não tem volta. A empatia acontece, e isso humaniza.

Entre tantas trocas, algumas me marcaram profundamente. Muitas mães e pais me procuram depois das sessões dizendo que querem construir uma relação diferente com seus filhos. Lembro também de uma senhora, de mais de 80 anos, que contou que sempre havia julgado e até agredido o irmão com ofensas homofóbicas. Ele já tinha tentado tirar a própria vida. Ao final da peça, ela disse: “Eu entendi tudo. Vou abraçar tanto o meu irmão”. Esse é o poder do teatro.

Teatro Sérgio Cardoso (Sala Paschoal Carlos Magno) – rua Rui Barbosa, 153, Bela Vista, região central. Até 16/10. Quarta e quinta, 19h. Duração: 55 minutos. A partir de R$ 50 (meia-entrada) em sympla.com.br



Fonte ==> Folha SP

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