O espetáculo “Elã”, da Cia. Mungunzá de Teatro e sob a direção perspicaz de Isabel Teixeira, desdobra-se no palco como meditação sobre a força da criação e a complexidade da existência. É uma jornada que toma emprestado o conceito de “Elã Vital” de Henri Bergson (1859-1941): o incessante impulso criador que move a vida. Para o filósofo, a existência é um fluxo contínuo em luta perene contra a matéria, a inércia do mundo real. Essa tensão fundamental entre o ímpeto de fluir e o obstáculo da realidade é o cerne do “drama” da vida que a Mungunzá faz vibrar em cena, especialmente ressonante no contexto sociopolítico de sua residência no Teatro de Contêiner na região da Luz.
A estrutura da obra foge do padrão tradicional graças ao inovador método A Escrita na Cena®, criado por Teixeira. Nele, a cronologia se inverte: o espetáculo não parte de um texto fixo, mas da ação, da pulsão e da duração (o tempo vivido) do ator. O artista é visto como um “escritor” que, primeiramente, “escreve com o corpo, a voz e o espaço”, sendo a dramaturgia final um subproduto da performance.
No entanto, a palavra permanece como foco central do trabalho. A trama tecida, que costura oito narrativas simultâneas em diferentes linhas espaço-temporais, ganha vida através de um trânsito estético plural. A montagem não se prende a um único estilo, flutuando entre o naturalismo dramático e a franqueza da performance, conforme exigido pela pulsação de cada criador.
A dimensão sonora, por sua vez, enriquece essa estética plural. Ela tece uma atmosfera única a partir da acumulação progressiva de ruídos do dia a dia e de diversas texturas auditivas. Em seus clímax, essa camada sonora se condensa e irrompe em forma de canção. Esses momentos funcionam como poderosos estouros líricos, que não apenas sintetizam as tensões narrativas, mas também expõem os sentimentos mais profundos da obra.
O material bruto gerado nesse processo, essa coleção de memórias e afetos, é fixado no “Livro de Linhas”, um artefato exclusivo e performático da Cia., diferente de qualquer script comum. A confecção manual da primeira edição do livro pelo próprio elenco transforma-o em um objeto de matéria que contém a “memória fixa” do esforço criativo, refletindo a luta contra a inércia. O espetáculo “Elã”, por sua vez, atua em diálogo constante com este livro, reativando e expandindo a memória registrada e concretizando o ciclo de criação-fixação-reatualização.
Três perguntas para…
… Isabel Teixeira
O conceito filosófico de Élan Vital, de Henri Bergson, o descreve como uma força vital e criadora, que impulsiona a evolução. O que essa ideia de um impulso criativo tem a dizer sobre nosso tempo, especialmente em um contexto de tantas crises?
O impulso criativo hoje sofre com a falta de escuta e o excesso de certezas absolutas, que geram lacunas no relacionamento. Esse Élan Vital bergsoniano, para mim, se manifesta justamente na escuta profunda – uma escuta dos fluxos narrativos dos atores, que “escrevem no ar da cena”. É um retorno ao que chamo de “quarto primordial”, aquele estado de descoberta e alumbramento muito pessoal, como quando ouvimos uma música repetidamente na adolescência e nos sentimos plenos. Aí você pega a escova de cabelo e faz um show usando a escova de microfone com essa música.
Não se trata de romantizar, mas de uma escuta atenta para desdobrar imagens e fabular juntos. É a seiva da vida, um antídoto contra a cultura do cancelamento e das polarizações. Quando as pessoas se conectam sem medo de se jogar no abismo do desconhecido, sem a pressão de acertar, a fabulação humana se revela em toda a sua riqueza, sem hierarquias.
O método A Escrita na Cena® propõe uma inversão: a ação precede o texto fixo. Na prática, como você, enquanto diretora, guia e molda o caos criativo inicial para que ele se torne uma dramaturgia coesa, sem abafar a pulsão individual do ator?
Não vejo como um método, que é muito fechado, mas como um “sistema” ou simplesmente “escrita na cena”. O processo se dá através de fluxos narrativos (onde o ator cria a partir do seu “quarto primordial”) e devolutivas. Minha função não é criticar ou impor, mas “jogar luz” sobre o que surge. Aponto potências nas entrelinhas, faço conexões com referências das artes para inspirar e abrir possibilidades, nunca para travar. É como usar tinta para pintar novas imagens para o ator.
O ator depois lê a transcrição do seu fluxo com a luz da minha devolutiva, e muitas vezes enxerga coisas que não percebeu ao falar. Esse material bruto (fluxos e devolutivas) vira um dossiê, que é a pedra bruta. Só então entra o labor da dramaturgia tradicional: a escaleta, a matemática cênica. É a ferramenta para esculpir aquele caos inicial em uma estrutura. O palco também “escreve” – durante os ensaios, a cena pode pedir para ir para outro lugar. Chega um momento em que a própria obra começa a “falar” e eu passo a escutá-la. É um trabalho de escuta hiperativa, primeiro do indivíduo e depois da obra coletiva.
É um processo semelhante ao que [Andrei] Tarkóvski descrevia sobre a montagem: ele entrava na ilha de edição com o material bruto e, às vezes, um frame simplesmente pedia o outro. Ele perdia o controle consciente e respondia aos comandos que a própria obra sussurrava em seus olhos e ouvidos. É mais ou menos assim que eu trabalho.
Por isso, você nunca assistirá a uma peça e dirá “isso é puramente Isabel Teixeira”. As peças que escrevo nunca são só minhas; são cocriadas com os atores. E as que dirijo são o que chamo de ‘escrita expandida’ – que é, para mim, a verdadeira essência da dramaturgia.
A peça costura oito narrativas simultâneas em diferentes espaços-tempo. Qual foi o maior desafio na montagem dessa estrutura não linear para garantir que o público pudesse se conectar à trama, sem necessariamente seguir uma lógica tradicional?
A estrutura foi pensada para que o público fosse ativo, criando sua própria conexão. Eu poderia contar a história de oito maneiras lineares diferentes (ex: a filha que quer reescrever a história do pai homem-bomba; o vendedor de morangos que sonha com uma peça). A chave foram os “grounds zero” ou atmosferas (biblioteca, hospital, trincheira, cemitério). Esses espaços, que também são personagens, é que geram o movimento entre as linhas narrativas.
Criei “vetores de relação” entre os personagens dentro dessas atmosferas, e no ensaio, abri esse vetor para o público. Pensei muito na analogia com rolar o feed do Instagram: somos multifocais, mas também estamos distraídos. A peça reflete isso, é como um feed de ambiências e acontecimentos, quase sem pausa, que espirala até o fim. A música e o humor são usados para atrair e reter o foco do espectador nesse fluxo. Por trás, há uma matemática cênica rigorosa (ritmo, caixa cênica) para sustentar a coesão dessa estrutura aparentemente caótica. A dramaturgia expandida – da luz ao figurino, até o cabelo de um personagem – foi fundamental para tecer essa teia complexa.
Sesc Pompeia – rua Clélia, 93, Água Branca, região oeste. Até 12/10. Qui., 20h. Sex. e sáb., 16h e 20h. Dom., 18h. Duração: 120 minutos. A partir de R$ 21 (credencial plena) em sescsp.org.br e nas bilheterias das unidades
Fonte ==> Folha SP