Uma surpresa (desagradável) no meio do cano ronda as concessões de saneamento

saneamento básico

Cinco anos após a entrada em vigor do Marco Legal de Saneamento, uma enorme interrogação passou a rondar os investidores: a credibilidade dos dados que fundamentam a cobertura de saneamento de municípios alvo de concessão nos editais do poder concedente.

O caso de erros de um edital de 2021 que estourou nos últimos dias – referente aos contratos de saneamento da Cedae, por ocasião da privatização do serviço de água e tratamento de esgoto em quatro blocos do estado do Rio de Janeiro – chamou a atenção pelo descompasso entre os dados de cobertura de esgoto apresentados pela estatal no edital de concessão dos seus serviços e os detectados pelas três concessionárias ao assumir a operação.

As compensações pedidas pelas concessionárias já somam R$ 2,7 bilhões, valor equivalente a mais de 10% das outorgas recebidas pelos quatro lotes ou mais da metade da dívida pública a ser paga este ano pelo estado fluminense à União (R$ 4,9 bilhões).

Especialistas ouvidos pelo NeoFeed afirmam que o caso do Rio de Janeiro não é isolado. Em pelo menos outros dois editais – no Pará e no Amapá -, a discrepância relevante entre os índices divulgados no edital e a realidade operacional, o que obrigaria as concessionárias a investirem mais do que o previsto para atingir as metas de cobertura, também acabou resultando em pedidos de reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos.

De acordo com especialistas, o episódio da Cedae – embora considerado fora da curva pelo tamanho do prejuízo – deve servir de alerta para a importância da elaboração dos estudos técnicos consistentes antes da publicação dos editais e a necessidade de auditoria e confirmação dos dados expostos nos próximos certames.

A preocupação procede porque o que está em jogo é a credibilidade do Marco Legal do Saneamento, que foi aprovado em julho de 2020, com metas ambiciosas – entre elas, 99% da população com acesso à água potável até 2033 e 90% com coleta e tratamento de esgoto até 2033.

Desde que a Lei 14.026/20 entrou em vigor, foram realizados 45 leilões em 19 estados, abrangendo todas as regiões do País, com R$ 103,9 bilhões de investimentos contratados e outorgas, com impacto direto ou previsto para mais de 115 milhões de pessoas. A cobertura ainda é insuficiente, com 34 milhões sem acesso à água potável e mais de 90 milhões sem coleta de esgoto.

Embora os casos sejam pontuais, a segurança jurídica trazida pelo marco – sempre elogiada pelos investidores – é fundamental e deve ser preservada, principalmente olhando para os próximos certames.

De acordo com o consultor Percy Soares Neto, ex-diretor-executivo da Abcon – entidade das operadoras privadas do setor de saneamento -, dois fatores contribuem para as falhas dos dados de cadastro de cobertura de saneamento do poder concedente ao preparar um edital de licitação.

Um deles é operacional. Segundo ele, as empresas estatais que vão fazer a concessão costumam ter um cadastro por onde a rede passa, além dos clientes atendidos. Para a água, quando tem hidrometração, o cadastro é mais preciso. Mas para esgoto, sem esse recurso, é estimado em função da extensão da rede.

“É muito difícil auditar esses números porque as redes são enterradas e, muitas vezes, existem obras emergenciais ou muito antigas que não estão registradas nos cadastros”, diz o consultor.

Além disso, boa parte dos cadastros originais de rede não é digitalizada, com registros falhos ou desatualizados, gerando um erro de informação que acaba aparecendo no edital como dado oficial.

Prejuízo bilionário

No caso da Cedae, além da Águas do Rio (blocos 1 e 4) – que  há meses vinha apontando falhas do edital quanto aos dados de cobertura de sua área de atuação -, as concessionárias Rio+Saneamento (bloco 3) e Iguá (bloco 2) também pediram reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos assinados, contestando os dados de cobertura de esgoto apresentados pela Cedae no edital de concessão dos seus serviços.

Um relatório feito por um consórcio contratado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDES) na época do leilão já alertava que os números sobre a coleta e o tratamento de esgoto, apresentados pela Cedae na formulação do edital, estavam superdimensionados.

O relatório destacava que as informações do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (Snis), do Ministério das Cidades, base para estimar a cobertura de água e esgoto nos municípios, poderiam gerar distorções significativas nos cálculos de atendimento.

“Vale destacar que os dados do Snis devem ser avaliados com cautela, tendo em vista que são autodeclarados, não havendo uma fiscalização ou conferência a respeito dos mesmos e, com isso, o preenchimento pode ocorrer de forma equivocada”, diz um trecho do relatório, de 2021.

O edital chegou a limitar a responsabilidade do poder concedente em relação às informações cadastrais a uma variação de até 18,5% dos dados.

Leonardo Carvalho Rangel, especialista em infraestrutura e sócio da MBDR Sociedade de Advogados, diz que o poder concedente pode prever percentuais de variação, como forma de inibir eventual e futuro pleito de reequilíbrio em favor do ente privado.

“No caso da Cedae, o patamar elevado de variação pode estar associado à tentativa da empresa de transferir parte do risco ao concessionário, em razão da baixa confiabilidade dos dados do SNIS”, observa.

Esta semana, o governador do Rio, Claudio Castro, admitiu os erros do edital e confirmou que o governo negocia com concessionárias de saneamento um reequilíbrio econômico de contratos.

“Entendemos que as concessionárias têm esse direito; diferentemente de outros momentos da história, onde foi se empurrando a sujeira para debaixo do tapete, esse governo encara o problema e enfrenta o reequilíbrio”, disse Castro.

Antes do anúncio, a Cedae havia feito um acordo de compensação com a concessionária Águas do Rio, do grupo Aegea, no valor de R$ 900 milhões, mas houve contestações do Tribunal de Contas do Estado (TCE) e do Ministério Público fluminense.

“Com relação à contestação do MP, a Cedae ainda não foi notificada, mas está à disposição para prestar os esclarecimentos”, diz nota da empresa estatal, solicitando que outros esclarecimentos sobre os problemas do edital fossem endereçados ao governo estadual.

A Águas do Rio também se posicionou. “O termo celebrado com o Estado e a Cedae definiu medidas para corrigir divergências nos dados de cobertura de água e esgoto”, diz a concessionária, em nota. “A decisão do Estado evitou aumento tarifário para 10 milhões de fluminenses e manteve os investimentos e as melhorias ambientais na Baía de Guanabara.”

A Rio+Saneamento, que também foi prejudicada, pleiteia uma indenização de R$ 325 milhões. Pelo menos oito municípios da área de cobertura do Índice de Atendimento Urbano de Esgoto (IAE), que no edital apareciam com algum nível de cobertura, na verdade não tinham rede de esgoto instalada (0%) – entre eles, Macuco (54% de cobertura indicado no edital), Natividade (65%) e Paracambi (75%).

“A Rio+ Saneamento esclarece que os pleitos de reequilíbrio econômico-financeiro são previstos em contrato e que o processo informado se encontra em tramitação”, diz a empresa por meio de nota.

A Iguá, que alega um desequilíbrio de R$ 1,5 bilhão em seu contrato, entrou com um pedido de reparação numa câmara de arbitragem.

Em nota, a empresa afirma que entre os pontos apresentados está o número de beneficiários da tarifa social, que superou as estimativas iniciais. Já em relação à cobertura de água e esgoto, a Iguá calculou que o impacto da diferença observada é de aproximadamente R$ 6,2 milhões.

“As análises estão em diferentes estágios e esferas de avaliação. Em relação à arbitragem em andamento, o processo está em fase de definição da composição do corpo de arbitragem do juízo arbitral”, diz a nota da empresa.

Cobertura inferior

Outros erros em editais de saneamento que geraram pedidos de reequilíbrio de contrato ocorreram em licitações na Região Norte.

No Pará, a Aegea venceu todos os leilões de quatro blocos de concessão de saneamento básico realizados pelo governo estadual. A concessão abrange 126 municípios e prevê cerca de R$ 18,8 bilhões em investimento.

A cobertura real inferior à prevista no edital, especialmente em cidades como Santarém, levou o governo estadual a reconhecer falhas na modelagem e iniciar a revisão dos indicadores de cobertura.

De acordo com a Aegea, as discussões sobre reequilíbrios contratuais fazem parte da rotina do setor de saneamento e são abordadas com responsabilidade e transparência.

“Cada contrato possui especificidades e particularidades que devem ser respeitadas e tratadas, conforme previsto nos marcos regulatórios e nos editais de licitação”, diz a empresa, por meio de nota. “No modelo de atuação da companhia buscamos sempre o diálogo com o poder concedente e as agências reguladoras, com o objetivo de encontrar soluções equilibradas.”

No Amapá, a concessionária Equatorial também identificou infraestrutura de água e esgoto em estado mais precário do que o previsto no edital. Da mesma forma que no Pará, o governo local reconheceu falhas na modelagem e iniciou revisão dos indicadores de cobertura. A Equatorial não retornou o pedido de posicionamento.

A Abcon, entidade das operadoras privadas do setor de saneamento, preferiu não alimentar a polêmica. “Como associação, podemos dizer que são hipóteses que ainda estão sendo analisadas pelas agências reguladoras e cabe às concessionárias responderem a cada situação específica”, diz nota da entidade.

O consultor Percy Soares Neto afirma que, a despeito dos casos relatados, o processo de preparação dos editais e das modelagens vem amadurecendo, incorporando cláusulas nos contratos que prevejam mecanismos ágeis e seguros de fazer as correções decorrentes.

“O caso específico da Cedae faz com que a percepção de que gastar mais dinheiro com informação e tecnologia nos dados dos editais é importante porque erros podem gerar essa questão futura de indenização”, observa.

Para Felipe Kfuri, sócio de Infraestrutura do escritório L.O. Baptista Advogados, as situações parecidas no Rio, Amapá e Pará, reforçam que o problema é nacional e exige padronização e transparência na produção e auditoria de informações públicas.

“Em última instância, a lição é clara: sem dados confiáveis, o planejamento e o sucesso das concessões de saneamento ficam comprometidos, elevando custos, riscos e desconfianças num setor estratégico para a universalização dos serviços até 2033”, diz Kfuri.



Fonte ==> NEOFEED

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