O projeto do novo Código Civil (PL 4/2025), do senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), pode aumentar a insegurança jurídica na celebração de contratos no país — não apenas entre empresas, mas também entre pessoas físicas e jurídicas, e na prestação de serviços. A avaliação é de especialistas consultados pela Gazeta do Povo.
A proposta tramita no Senado. Se aprovada como está, pode fazer com que, para saber se um contrato é válido, ele precise ser apreciado pela Justiça, invertendo a lógica de que o contrato sela uma espécie de “lei e de obrigações” entre as partes. O alerta é de Paulo Doron R. de Araújo, professor da Escola de Direito da FGV-SP.
Segundo o jurista, atualmente há apenas duas exceções que justificam a quebra de contrato no Código Civil: em razão da função social e da boa-fé objetiva (veja mais abaixo). O texto da nova proposta, porém, prevê nulidade contratual em 33 situações distintas, elevando a insegurança jurídica e ampliando o uso da expressão função social – que, segundo o especialista, é bastante vaga.
Doron explica que o Direito precisa de exceções, como as duas citadas anteriormente, que acarretam avaliações mais éticas do que propriamente jurídicas e permitem certa flexibilidade na hora do julgamento.
Contudo, no caso do novo texto, essa flexibilidade é ampliada de forma tão significativa que pode fazer com que praticamente qualquer contrato seja questionado. “Toda vez que alguém não quiser cumprir um contrato, pode buscar um argumento dentro dessas 33 opções para que não seja mais válido”, explica.
Da mesma forma, Simone Sinis Sobrinho, advogada da Gerência Jurídico-Contencioso da Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (Fiemg), afirma que o texto proposto para o novo Código Civil aumenta o escopo de intervenção judicial, relativiza a força do pacto (contrato) e usa conceitos jurídicos vagos, o que pode comprometer a segurança jurídica das relações privadas.
“A proposta gera um ambiente de incerteza contratual, desestimula investimentos e onera especialmente os empreendedores menores, que passam a enfrentar maior risco de litígios e custos processuais imprevistos”, afirma. Afinal, se um contrato não garante o que está acertado, como se mantém um ambiente empresarial?
Segundo Sinis, a nova redação amplia o peso da função social do contrato e da intervenção judicial, substituindo a autonomia das partes por um critério aberto de “solidariedade contratual”, de difícil delimitação.
Proposta pode exigir glossário e parâmetros de revisão de contratos
Na visão de Vanderlei Garcia Jr., especialista em Direito Contratual e Societário, a proposta combina dois vetores: um que restringe a revisão judicial no caso de relações paritárias (quando há equilíbrio de poder entre as partes do contrato) e outro que afirma princípios abertos (função social/boa-fé) e testes para afastar a simetria, o que deve gerar aumento da litigiosidade até a consolidação desses critérios.
De acordo com o jurista, o saldo pode ser positivo para o ambiente de negócios se as empresas adaptarem rapidamente seus modelos. Para tanto, precisam elaborar contratos mais explicativos, com glossários e parâmetros de revisão, além de melhor documentar negociações e políticas de gestão de riscos contratuais. “Onde houver desequilíbrio estrutural, a expectativa é de maior debate judicial no curto prazo e mais proteção material no médio prazo”, conclui.
VEJA TAMBÉM:
-
Novo Código Civil e reforma tributária mudam regras e taxação de heranças
-

Bloqueio ao diálogo marca início da tramitação do Código Civil de Pacheco
Função social seria termo consolidado na jurisprudência
Na contramão das avaliações críticas, a relatora-geral da Comissão de Juristas para Atualização do Código Civil, Rosa Maria de Andrade Nery, afirma que a “forma do negócio jurídico foi muito bem tratada” na proposta. Nery emitiu seu parecer durante a primeira audiência pública realizada pela comissão, em 9 de outubro.
Na ocasião, a relatora citou, inclusive, as críticas feitas ao termo função social: “Há uma crítica severa à possibilidade de haver a nulidade do contrato quando ele fere a função social. Essa palavra é muito criticada nesse momento do levantamento dessa situação dentro do Direito Civil”, disse.
Segundo Nery, os críticos afirmam que a função social é um termo absolutamente não identificado pela doutrina, o que geraria condições muito fáceis para anular o contrato. “Mas a função social é uma expressão de todos nós, conhecida, discutida, levada em consideração com bastante firmeza da doutrina e da jurisprudência”, disse.
O que é função social e boa-fé e como são usadas em processos contratuais
Paulo Doron explica que, atualmente, a função social é utilizada basicamente em duas situações: em ações movidas por clientes de planos de saúde e em contratos de crédito. Ele analisou mais de dez mil processos que se valem da terminologia para questionar contratos na Justiça.
Na primeira situação, por exemplo, quando surgem novos tratamentos ou medicamentos para alguma doença que não estão listados no contrato com o plano de saúde, como a função social é promover a saúde do contratante, a Justiça costuma decidir que a empresa arque com os custos. Ou seja, a função social acaba sobrepujando as especificidades do contrato.
Em contratos de crédito, a função social é invocada em ações que buscam promover a revisão de taxas de juros, do prazo de empréstimos ou, até mesmo, como forma de isentar uma das partes de arcar com todas as parcelas de um empréstimo.
A boa-fé, por sua vez, é invocada em situações nas quais uma das partes se comporta de maneira desleal no âmbito do contrato, prejudicando a outra parte. A comprovação deste tipo de ocorrência também pode ser usada para anular o contrato.
Uso frequente da terminologia justifica emprego pela Justiça
No caso da nova proposta do Código Civil, o uso da função social e da boa-fé salta, como já dito anteriormente, de duas para 33 possibilidades. Doron argumenta que, quanto mais presente na legislação, mais liberdade se dá ao Judiciário para utilizá-la. “Se a proposta populariza, aquilo deixa de ser exceção e vira regra”, disse.
Simone Sinis comenta que, na parte de obrigações e contratos, o artigo 421 do Código Civil proposto por Pacheco prevê que “a liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato” e estabelece que as cláusulas que violem a função social serão nulas.
De acordo com a jurista, tal cláusula pode justificar que, em contratos de prestação de serviços, por exemplo, a ampliação da noção de função social pode levar à revisão de cláusulas livremente negociadas, como multas ou prazos, mesmo entre empresas com igual poder de barganha.
Outro exemplo é o de um contrato para fornecimento de insumos, firmado com preço fixo e prazo determinado. Diante de um pedido de revisão judicial por uma das partes — que alegue alteração nas “circunstâncias econômicas” ou desequilíbrio subjetivo —, haverá, necessariamente, revisão pelo Judiciário, desprestigiando a força do acordo entre as partes. “Isso pode inviabilizar o planejamento financeiro e comprometer cadeias produtivas inteiras”, argumenta.
VEJA TAMBÉM:
-

Juristas apontam falhas técnicas e insegurança jurídica no Código Civil de Pacheco
-

Código Civil de Pacheco dá superpoderes a juízes
Proposta de Código Civil não deixa claro quais são os critérios de paridade econômica
Segundo Vanderlei Garcia, o risco de aumento na judicialização decorre menos da abertura de “novas portas” na revisão do Código e mais de pontos de “fricção interpretativa”, como, por exemplo, onde começa e termina a função social aplicável a cada caso concreto.
Já no caso da paridade — medida de equidade de poder econômico entre as partes contratantes —, o ponto principal se refere aos “elementos concretos” que serão utilizados para demonstrar a assimetria econômica relevante.
Em relação à paridade, Simone Sinis também faz um alerta. De acordo com a jurista, o Código atual limita a revisão de contratos de adesão e cláusulas abusivas a situações em que a desvantagem é manifesta. “O projeto [do novo Código Civil] amplia o alcance desses dispositivos, abrindo margem para intervenção judicial também em contratos entre partes simétricas”, defende.
Ela ainda chama a atenção para os novos artigos 421-D e 421-E, que introduzem conceitos inéditos como “pluralidade negocial” e “conexidade contratual”, permitindo que juízes revisem não apenas o contrato em si, mas o conjunto de relações econômicas entre as partes — algo inexistente no Código Civil atual.
Fonte ==> Gazeta do Povo.com.br