Quando a mineira Cynthia Kalichsztein entrou na faculdade de arquitetura, diferente de seus colegas, ela não tinha a ambição de projetar residências, hotéis, restaurantes ou grandes obras públicas. Seus sonhos eram, digamos, bem menos “sexies”.
Aos 16 anos, ainda no colégio, durante um voluntariado nos Estados Unidos, ela trabalhou com crianças especiais e viu o tamanho do impacto das adaptações físicas de um prédio na qualidade de vida dos pacientes. Cynthia encontrou ali sua missão: criar espaços inclusivos para portadores de necessidades especiais — o que, àquela época, pelo menos no Brasil, não passava de um apêndice na maioria das construções.
Assim, em 1994, terminado o curso, Cynthia foi para Chicago, onde, por dois anos e meio, integrou a divisão de saúde de um escritório de arquitetura. Passadas três décadas, hoje, aos 52 anos, ela é uma das principais referências brasileiras em arquitetura hospitalar.
Como sócia do RAF Arquitetura, Cynthia está à frente de uma das maiores empreitadas de sua carreira: a construção do complexo urbano Parque Global, no bairro do Panamby, na capital paulista.
Avaliado em mais de R$ 14 bilhões e previsto para terminar em 2030, o megaprojeto abriga um conjunto de 200 mil metros quadrados, com cinco torres residenciais, centro médico-hospitalar do Einstein Hospital Israelita e uma unidade da V3rso, a marca de hotéis “tech-boutiques” do grupo Emiliano.
Uma obra desta escala, com tantas funções integradas, é um desafio para qualquer arquiteto. Mas, para Cynthia, ela é ainda mais especial. A arquiteta enfrenta o desafio de projetar um hospital oncológico enquanto lida com o próprio tratamento contra o câncer.
No final de 2017, durante as obras do hospital paulista Vila Nova Star, construído para ser um centro de referência na pesquisa e tratamento do câncer, Cynthia descobriu ser portadora de um tumor mamário.
“Para mim, fazer um hospital oncológico acaba tendo um gostinho especial”, diz a arquiteta, em conversa com o NeoFeed. “Como meu tratamento tem duração de dez anos, eu ainda estou em tratamento.”
Agora, com o olhar também de paciente, ela sabe a diferença que faz ser cuidada em um ambiente caprichado e acolhedor.
Por muito tempo, os hospitais eram tidos como mais um entre tantos equipamentos técnicos, voltados à eficiência médica — prédios genéricos, frios, estéreis e impessoais. A partir dos anos 1980, porém, a filosofia do cuidado centrado no paciente ganhou força: estudos científicos mostraram a importância do ambiente físico para o tratamento e recuperação dos doentes.
À medida que o novo conceito avançava, começaram a surgir no Brasil os primeiros escritórios de arquitetura focados no desenvolvimento de projetos para o setor de saúde. É aí que a história de Cynthia se encontra com a dos arquitetos cariocas Aníbal Sabrosa, Rodrigo Sambaquy e Flávio Kelner.
Em 1990, fundaram o RAF Arquitetura, já mirando hospitais, centros de saúde e laboratórios. A demanda começou a crescer e, em 2000, o trio decidiu abrir uma filial em São Paulo.
É quando Cynthia, que, desde 2000, já trabalhava para o escritório, se tornou sócia e assumiu a liderança da empresa na capital paulista.
Atualmente, o RAF conta com 90 funcionários, entre Rio e São Paulo, e já acumula 500 projetos executados, em um total de 3 milhões de metros quadrados construídos nas maiores cidades do país e também na Arábia Saudita, África do Sul e França.
Saíram das pranchetas do RAF, por exemplo, a modernização de gigantes como a Rede D’Or, Dasa e Einstein Hospital Israelita (o antigo Hospital Israelita Albert Einstein).
Abertura aos estrangeiros
A grande inflexão ocorreu em meados de janeiro de 2015. A lei número 13.097 alterou a lei orgânica de saúde, de 1990, que impunha restrições à participação de estrangeiros na saúde brasileira, sobretudo às empresas com fins lucrativos. A partir daquele momento, foi permitida a entrada de capital internacional e a arquitetura hospitalar ganhou impulso.
“Até então, o mercado estava completamente engessado”, diz Cynthia. “Ele era composto basicamente por comunidades e famílias que decidiram se juntar, criar um hospital e investir nele a partir do retorno proporcionado pela atividade.”
No time de sócios do RAF, estão Anibal Sabrosa, Cynthia Kalishtein, Guilherme Carvalho, Henri Medalla, Flavio Kelner e Rodrigo Sambaquy (Foto: Divulgação)
As suites do paulista Vila Nova Star, da Rede D’Or, oferecem as comodidades de um hotel de luxo (Foto: Divulgação)
O novo hospital Barra D’Or, da Rede D’Or, no Rio de Janeiro, foi projetado pela RAF e ficou pronto no início de 2025 (Foto: Divulgação)
Centro de oncologia da Dasa, também localizado na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, abriu em 2021 (Foto: Divulgação)
O projeto do Hospital Sírio-Libanês, em Brasília, foi entregue em 2018 (Foto: Divulgação)
O Vila Nova Star foi o primeiro hospital a ser desenvolvido em um prédio corporativo já pronto (Foto: Divulgação)
Com a abertura, o investimento estrangeiro direto na saúde brasileira somou US$ 1,337 bilhão entre 2015 e 2020 — quase dez vezes mais do que os US$ 138 milhões registrados de 2001 a 2014, conforme estudo publicado na revista especializada Cadernos de Saúde Pública, em 2023.
Revigorados pelo dinheiro vindo de fora, os principais players do setor começaram a adquirir hospitais, clínicas e laboratórios — a maioria, endividada, conta Kelner ao NeoFeed. E assim foram se formando os grandes grupos de saúde que, com capacidade de investimento, passaram a reformular seus ativos. O RAF, como pioneiro no segmento, viu então seu portfólio ganhar volume.
Em abril de 2015, por exemplo, o fundo Carlyle adquiriu 8,3% da Rede D’Or em um negócio avaliado em R$ 1,75 bilhão. O dinheiro foi usado para expansão de operações do grupo, com a compra de novas unidades regionais e ampliação das já existentes. Apenas em 2021, a companhia controlada pela família Moll incorporou dez hospitais ao seu negócio.
Além dos hospitais
Os hospitais brasileiros entraram, então, em processo de “hotelarização”. Agora, além da infraestrutura tecnológica de última geração, conta (e muito) o rol de amenidades, a experiência de bem-estar oferecida aos pacientes e seus acompanhantes. Capitaneada por Cynthia, a construção do Vila Nova Star, da Rede D’Or, em São Paulo, em 2019, ilustra à perfeição essa tendência.
Orçado em R$ 350 milhões, o hospital conta com apenas sete quartos por andar — nos projetos tradicionais, são, em média, 30 por pavimento. As acomodações têm 60 metros quadrados e são equipadas com camas inteligentes, enxovais de algumas centenas de fios e gastronomia assinada por chefs, garantindo a exclusividade e a sofisticação típicas dos hotéis mais estrelados.
“O Vila Nova Star foi o primeiro prédio corporativo convertido em hospital, o que nos trouxe um baita desafio, já que a laje dos hospitais é mais alta, os espaços precisam ser feitos de forma pensada. Mas, no fim, deu certo”, comemora Cynthia. “Hoje, já não há mais terrenos disponíveis nas áreas nobres da cidade e vai ser preciso reaproveitar o que já existe.”
Acompanhando a dinâmica do setor de saúde, a arquiteta e o RAF agora vão além. O escritório, por exemplo, segue o avanço da indústria de cuidados com idosos, com a criação dos novos modelos de instituições de longa permanência.
“Há quatro anos nós fizemos o primeiro projeto nesse formato e agora estamos desenvolvendo, junto com o Joseph Nigri, da Tecnisa, o Naara, que promete ser a maior inovação no setor, seguindo os modelos usados na Europa e nos Estados Unidos”, diz Kelner.
Para esses projetos, o RAF precisou repensar o conceito de asilo. As propostas mais modernas incluem quartos individuais com “cara de casa”, amplos espaços de convivência, salas de cinema e salões de beleza, entre outras comodidades.
Entre hospitais que parecem hotéis e casas de repouso que lembram lares, Cynthia e o RAF ajudam a redesenhar a fronteira entre técnica e acolhimento. Três décadas depois, aquela estudante que sonhava em criar espaços inclusivos segue fazendo da arquitetura uma extensão do cuidado.
Fonte ==> NEOFEED