A peça “Tom na Fazenda”, do canadense Michel Marc Bouchard, tornou-se um fenômeno duradouro no teatro brasileiro. Com tradução e atuação de Armando Babaioff e direção de Rodrigo Portella, a montagem segue em cartaz desde a sua estreia em 2017, um feito raro que a própria equipe considera seu “maior gesto político”. Essa longevidade atua como um ato de resistência em um cenário cultural hostil, dando voz a verdades urgentes em um país com altos índices de violência contra a população LGBTQIA+.
O sucesso é comprovado pela demanda do público, com temporadas esgotadas em São Paulo e uma turnê programada até 2026. A estratégia de internacionalização, com uma bem-sucedida participação no Festival d’Avignon em 2022, trouxe estabilidade financeira e garantiu a continuidade do projeto no Brasil.
A trama acompanha Tom, um publicitário urbano que viaja para o funeral de seu companheiro em uma fazenda isolada. Lá, descobre que a família do falecido ignorava completamente sua existência e a homossexualidade do filho. Ele é arrastado para uma teia de mentiras arquitetada por Francis, o irmão violento da vítima, que age como guardião da honra heteronormativa da família. A peça explora a inabilidade de lidar com o preconceito e a violência, mostrando como a mentira pode se tornar a base de um sistema familiar doente.
A montagem brasileira se distingue pela abordagem visceral de Portella, que opta por um final diferente do filme de Xavier Dolan e explora cenas de tensão homoerótica, sensualidade e violência. A cenografia, marcada pela presença da lama, simboliza a contaminação moral de Tom, cuja psique e assepsia urbana se desintegram progressivamente no ambiente opressivo.
A peça evita a demonização fácil de Francis, mostrando-o como um produto da repressão patriarcal. Sua relação com Tom é de complexa interdependência, mesclando violência e uma cumplicidade doentia, na qual o desejo reprimido só pode ser expresso por meio da agressão. Esta dinâmica revela uma “pulsão de morte” que impede o luto e perpetua o ciclo de destruição.
“Tom na Fazenda” ressoa profundamente com a realidade brasileira, tornando-se um veículo para discutir machismo, homofobia e patriarcado. Aclamada com os principais prêmios do teatro nacional, a produção também conquistou o exterior, vencendo o prêmio de Melhor Espetáculo Estrangeiro no Québec e batendo recordes de público em Paris. Sua linguagem intensa e universal prova que o teatro brasileiro possui uma assinatura estética potente, capaz de ecoar globalmente.
Três perguntas para…
… Armando Babaioff
Você já definiu a simples permanência da peça em cartaz como seu ‘maior gesto político’. Pode elaborar sobre o que significa ser um ato de resistência cultural no Brasil de hoje?
Manter uma peça de teatro em cartaz no Brasil é um ato político e isso não é uma frase de efeito, é um fato. Estamos em cena há quase nove anos e isso é raro para o teatro brasileiro e por si só, já diz muito sobre o tipo de pensamento que move esse trabalho. Desde março de 2017, vejo do palco as mudanças do Brasil e do mundo: um impeachment, censura e ataques, vi o desmonte de teatros pelo Brasil de perto e eu sei dizer quais têm água quente e quais não têm nem chuveiro.
Produzir teatro, pagar uma equipe, sustentar temporadas, circular pelo país, empreender e reaprender a se comunicar com o público é muito complexo. Só que não é todo dia que uma peça como Tom na Fazenda acontece na vida de um ator, e eu tenho essa consciência, e meu maior gesto é insistir, garantindo que esse trabalho seja visto pelo maior número de pessoas. Trata-se de um drama gay que fala sobre homofobia e patriarcado no país que mais mata pessoas da comunidade LGBTQIA+, da qual faço parte. Eu sei o impacto que o espetáculo causa nas pessoas, no Brasil e no exterior. É sobre não deixar que a falta de políticas culturais, o desinteresse institucional ou a violência simbólica nos parem. É se reinventar o tempo inteiro. O teatro, desde o seu surgimento até o dia de hoje, sempre será um espaço de encontro e de reflexão coletivos, num tempo em que tudo nos empurra para individualidade, o teatro insiste em reunir e isso hoje em dia é profundamente subversivo.
A decisão de levar o espetáculo para o Festival d’Avignon em 2022 parece ter sido um ponto de virada. Como essa estratégia de internacionalização surgiu e de que forma o sucesso no exterior garantiu a sobrevivência do projeto no Brasil?
A ida ao Festival d’Avignon, em 2022, foi um ponto de virada. Inicialmente prevista para julho de 2020, a viagem foi adiada pela pandemia. O país vivia um período duríssimo, estávamos saindo de uma pandemia, poucos teatros reabrindo, o público com medo, a classe artística exaurida e muitos projetos interrompidos. E, ao mesmo tempo, vivíamos um cenário de desmonte cultural e desvalorização da arte. Nesse contexto, percebi que se quisesse continuar existindo como artista, precisava me mover. A estratégia de internacionalização nasceu da urgência de sobreviver, mas também de um desejo profundo e antigo de expandir o diálogo, e isso só foi possível porque eu tenho ao meu lado o Sérgio Saboya, meu amigo e diretor de produção, que tem um conhecimento e uma expertise raros no nosso teatro. O Sérgio foi fundamental: ele transformou um impulso quase desesperado em uma ação concreta, com planejamento, rigor e inteligência.
Não houve convite nem patrocínio, fomos por conta própria. Eu investi a minha rescisão do meu contrato com a Globo para financiar a ida do “Tom na Fazenda” ao festival de Avignon, que não é apenas um festival de teatro, é também uma vitrine, uma feira de negócios que regulamenta o teatro nos países francófonos. Estávamos na mostra paralela, no meio de 1.500 espetáculos, movidos pelo desejo de internacionalizar um espetáculo de teatro brasileiro independente. Foi uma escolha radical, movida única e exclusivamente por uma convicção pessoal, a tal fé, mas estávamos preparados para isso.
Ficamos em cartaz por um mês num dos maiores festivais de teatro do mundo e deu certo. O sucesso em Avignon nos levou no ano seguinte a uma temporada em Paris, no celebrado Théâtre Paris-Villette, onde batemos o recorde de público e bilheteria da história do teatro e a uma turnê de cinco meses na Europa onde nos apresentamos em teatros importantes e históricos. O Festival de Avignon trouxe tantos resultados positivos ao projeto que resolvemos que deveríamos levá-lo ao Festival de Edimburgo na Escócia, a maior feira de teatro do planeta e assim fizemos em agosto desse ano, dessa vez tínhamos o patrocínio do Ministério da Cultura e da Petrobras através da Lei de Incentivo a Cultura, a Lei Rouanet e apoio do Instituto Guimarães Rosa que é responsável pela difusão da arte brasileira no exterior. Por conta dessa ida a Edimburgo já estamos negociando apresentações na Coreia do Sul e China em 2026.
A peça manteve sua força com a rotação de atores nos papéis de Francis e Ágatha. Isso sugere que a força está na concepção da direção. Como é o processo de reestabelecer a química com um novo colega de cena, mantendo a intensidade da relação?
Antes de tudo, há o texto. Não conseguiríamos criar esses personagens sem a dramaturgia de Michel Marc Bouchard, que insere em dinâmicas familiares complexas um estudo profundo sobre violência. Até a síntese do cenário em lama só funciona porque o texto permite. Ele é a gênese do trabalho, estabelece o universo, a tensão e a densidade emocional da peça. Tudo está nele.
O Rodrigo Portella se apropriou do texto do Michel Marc Bouchard e criou uma estrutura muito bem definida, mas que dentro dela há espaço para liberdade e para o risco, tudo é vivo. Quando um novo ator ou atriz entra nesse trabalho eles não são convidados a simplesmente repetir falas ou gestos, mas a entrar nesse universo e reconstruir as relações a partir dele.
A relação entre os personagens é o coração da peça, então, quando alguém novo chega, pra mim é como recomeçar uma dança, com um outro corpo, outra energia, outras histórias de vida e isso muda tudo. Muda o meu trabalho completamente, afeta a minha criação, eu preciso desaprender o que fazia e me apropriar do novo. O processo é diário: da sala de ensaio ao palco, construímos constantemente essas relações, muitas vezes diante do público, tornando a peça ainda mais viva.
Este texto pede atores e atrizes obcecados pelo ofício, e é um privilégio viver toda essa metamorfose ao longo dos anos. Não é repetição, é verticalidade. Depois de “Tom na Fazenda”, sinto que posso fazer qualquer coisa e não há faculdade que ensine isso.
Teatro Vivo – av. Dr. Chucri Zaidan, 2.460, Vila Cordeiro, região sul. Ter. e qua., 20h. Até 3/12. Duração: 120 minutos. Classificação indicativa: 18 anos. A partir de R$ 70 (meia-entrada) em sympla.com.br e na bilheteria do teatro
Fonte ==> Folha SP