A venda de uma empresa representa, para muitos fundadores, o ápice de uma trajetória empresarial e o início de uma nova fase patrimonial. Mais do que um evento de liquidez, a venda via M&A costuma gerar uma transformação profunda na natureza do patrimônio e nas dinâmicas familiares, seja em decorrência de uma transação bem-sucedida ou caso as coisas não saíam como o planejado.
Com a transação, aquilo que era capital produtivo, alocado na operação e sujeito aos riscos e ciclos do negócio, converte-se em liquidez parcial, cujo montante poderá ser incrementado ao longo do tempo, principalmente por força das estruturas de preço parcelado, diferido ou variável típicas de M&A. O dinheiro se transforma então em ativos financeiros, investimentos de capital e imobiliários, frequentemente pulverizados em diferentes estruturas —em situação consideravelmente diferente daquela em que todo (ou quase todo) patrimônio familiar está alocado na companhia há anos.
Tal transição, por si, já exigiria uma reorganização jurídica e sucessória que considere não apenas a preservação do patrimônio e dos diferentes ativos que serão detidos utilizando os recursos da venda da empresa, mas também sua continuidade sob a perspectiva familiar. Há de se considerar, ainda, os impactos tributários da operação em decorrência da estrutura proposta pelo comprador, o que muitas vezes nos leva a uma reorganização societária visando conferir maior eficiência tributária aos vendedores na alienação de suas participações. Mas existe ainda um terceiro elemento que também poderá justificar uma reorganização societária para os vendedores no contexto de um M&A: os riscos decorrentes da própria estrutura da transação.
Isso pode ocorrer, por exemplo, quando não há uma venda total, repassando apenas o controle da empresa, e o comprador, na qualidade de novo controlador, pretenda aumentar o nível de risco do negócio por meio de uma estratégia de crescimento que envolve o aumento do nível de endividamento e uma maior exposição a passivos trabalhistas, justificados por um potencial aumento na geração de caixa e distribuição de dividendos. Nesta hipótese, o negócio pode até parecer promissor, mas se os vendedores mantiverem participação societária como pessoa física, talvez seja adequado criar uma estrutura patrimonial para diminuir a exposição direta aos riscos e passivos de tal estratégia, sobretudo se os vendedores permanecerem em cargos de administração da companhia, como diretoria e conselho.
Em contexto similar, em uma transação em que os vendedores tenham feito uma venda total, mas ainda estejam sujeitos aos riscos decorrentes dos passivos relevantes da companhia que venderam e já tenham recebido parte do preço, pode ser vantajoso fazer um planejamento patrimonial —com ou sem viés sucessório— visando a proteção do capital já realizado contra a materialização de tais passivos. Cria-se assim uma proteção adicional ao patrimônio já realizado sem prejudicar as garantias contratuais dos compradores que, possivelmente, incluem mecanismos de retenção de valores futuros em favor dos compradores, que poderão ser acionados antes de que seja exigido um reembolso, pelos vendedores, do valor do passivo materializado.
FolhaJus
A newsletter sobre o mundo jurídico exclusiva para assinantes da Folha
Esses são breves exemplos e fatores que geram relevância para a discussão sobre a realização de um planejamento patrimonial e sucessório (modernamente apelidado de PPS) no contexto de um M&A. Fato é que, se bem estruturado, o PPS pode oferecer proteção patrimonial, eficiência tributária e clareza sobre as regras de sucessão —fatores essenciais para a longevidade do legado.
Todavia, caso o patrimônio de tal legado seja majoritariamente constituído pelos recursos da venda da empresa e ainda existam componentes de risco relacionados à transação, é importante que a construção do planejamento passe pela avaliação de tais riscos, visando a constituição de mecanismos adicionais que protejam o legado enquanto tais riscos perdurarem —lembrando que, no caso de uma venda total, os riscos perdurarão somente durante os prazos previstos nos contratos da transação, como ocorre com os mecanismos de indenização e de sobrevivência de disposições, que podem se estender a até 10 anos contados do fechamento. Por isso, é completamente factível se cogitar a implementação de estruturas transitórias e até mesmo reversíveis, com as cautelas de praxe para se evitar uma conduta que possa ser interpretada como simulatória, é claro.
A depender dos riscos envolvidos na transação, do perfil da família, do patrimônio envolvido e dos tipos de ativos do portfólio, há um leque de instrumentos disponíveis: holdings patrimoniais e operacionais, doações com cláusulas restritivas, testamentos, protocolos familiares, fundos exclusivos e até estruturas internacionais, como trusts ou fundações privadas. Não se foge, portanto, do rol de opções de estruturas clássicas de um PPS, havendo somente um novo elemento a ser considerado para se aumentar o grau de proteção dos titulares do patrimônio a ser protegido: o fato de eles serem vendedores em uma transação de M&A que, eventualmente, poderá gerar riscos com o potencial de afetar o patrimônio em questão, o que certamente não é desejado em uma transação que deveria, em tese, maximizar tal patrimônio.
Fonte ==> Folha SP