Enel: a armadilha da caducidade e a inércia do curto prazo – 24/12/2025 – Mauricio Portugal Ribeiro

Mulher agachada recolhe água em balde no patamar de escada interna com iluminação fraca, usando lanterna de celular.

A recorrência de eventos climáticos extremos e os consequentes apagões na região metropolitana de São Paulo criaram um ambiente de justificada revolta popular. Diante de milhões de cidadãos no escuro, a resposta política imediata tem sido a promessa da “caducidade” do contrato de concessão da Enel.

A palavra soa forte, sugere punição exemplar e resolução definitiva. No entanto, sob a ótica regulatória e jurídica, apostar todas as fichas nesse processo pode ser uma armadilha que, ironicamente, posterga as soluções reais para 2028.

É preciso compreender a desconexão entre o tempo da política e o tempo do contrato. A decisão da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) de instaurar processos punitivos e fiscalizações de “força-tarefa” responde ao clamor das ruas, mas esbarra em um arcabouço legal complexo e anacrônico. Os contratos de distribuição de energia vigentes, em sua maioria concebidos na década de 1990, não foram desenhados para a realidade da emergência climática atual. Eles carecem de métricas modernas de resiliência e, pior, oferecem vasto espaço para contestações judiciais.

O histórico recente nos mostra o roteiro provável. Em episódios anteriores de falhas no fornecimento, a concessionária foi intimada a corrigir infrações dentro de prazos regulamentares. Tecnicamente, as exigências pontuais foram cumpridas, ainda que a Aneel tenha afirmado que esse cumprimento foi feito com providência “ad hoc” e que as falhas estruturais persistiam.

Mas, esse cumprimento “ainda que formal” cria uma blindagem jurídica. Ao tentar acelerar uma caducidade agora, o poder público entra em um terreno pantanoso. A concessionária possui argumentos para travar o processo na Justiça: desde a alegação de força maior devido à magnitude das tempestades até a responsabilização compartilhada com o poder público, que falha no manejo arbóreo urbano.

A realidade nua e crua é que um processo de caducidade no Brasil é moroso. É altamente provável que a batalha judicial dure mais tempo do que o restante da vigência do contrato atual, que expira naturalmente em julho de 2028. Ou seja, gastaremos energia institucional e capital político em uma disputa que não entregará uma nova operadora antes do fim da concessão.

Basta olhar o exemplo das concessões de rodovias federais realizadas entre 2012 e 2014. Quase todas elas tiveram processos de caducidade aberto e somente um deles levou ao término do contrato. Em todos os demais casos, mesmo com os processos de caducidade em andamento, foi necessário renegociar o contrato para destravar os investimentos, em lugar de esperar que a caducidade tivesse efeitos.

Note-se que a mera ameaça de caducidade é geralmente considerada evento adverso pelos financiadores que costumam nessas situações travar todos os empréstimos (mesmo de capital de giro) para a concessionária. E isso pode levar à suspensão dos investimentos pela concessionária. Por isso, é possível que seguir em frente com um processo de caducidade leve, inclusive, à piora da prestação do serviço.

Se a expulsão sumária é juridicamente improvável e a intervenção direta do Estado na operação —que seria possível imediatamente, e que foi feita no passado no Grupo Rede e na CEMAR— é nesse caso indesejada pelos políticos (pois transferiria o risco de novos apagões diretamente para o colo do governo), o que resta? Resta a urgência do planejamento para o próximo ciclo.

Estamos perigosamente atrasados na modelagem da nova licitação de 2028. Em vez de vender a ilusão de uma troca imediata de operador, que a judicialização impedirá, o foco deveria estar na construção de um contrato moderno. É necessário mapear os custos de adaptação da rede —como o enterramento de fios em áreas críticas— e definir quem pagará essa conta, pois a resiliência climática tem um preço elevado que precisa ser equacionado entre tarifa e subsídio.

Além disso, caso se consiga por alguma mágica encerrar rapidamente o contrato de concessão, o que seria colocado no lugar dele?

O término do processo de caducidade contra a Enel será em vão sem que esteja adequadamente contratado um novo operador para a concessão. E isso requer tempo: levantar informações sobre o sistema, mapear as suas vulnerabilidades, definir soluções e custos, produzir documentos para uma nova licitação (os aditivos que a Aneel preparou para prorrogação de contratos não são um bom modelo), colocar tudo isso em consulta pública, aprovar nos órgãos de controle, nesse caso no TCU (Tribunal de Contas da União), e, por fim, realizar a licitação. Equívocos ou deficiências na condução desse processo afetarão negativamente a qualidade da prestação dos serviços pelo operador que assumir no lugar da Enel.

A insistência na caducidade como panaceia de curto prazo serve como anestésico social, mas não resolve o problema físico da rede. Sem um levantamento detalhado dos ativos e sem um novo contrato que preveja obrigações claras de mitigação de desastres, corremos o risco de perpetuar a vulnerabilidade da infraestrutura, seja quem for o operador. A indignação é legítima, mas a solução exige menos voluntarismo punitivo e mais engenharia contratual. Do contrário, continuaremos à mercê do próximo temporal, com ou sem liminares judiciais.



Fonte ==> Folha SP

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