Em um cenário teatral frequentemente marcado por orçamentos restritos e produções enxutas, a aposta em elencos numerosos se afirma como um ato de resistência artística e fé no poder do coletivo. A realização de temporadas com grandes conjuntos enfrenta barreiras financeiras intransponíveis para muitos, tornando cada montagem bem-sucedida uma epopeia em si mesma. Este panorama, do melhor que passou nos palcos paulistanos em 2025, celebra justamente esses feitos, analisando como a força e a complexidade de elencos ampliados são capazes de superar as dificuldades materiais e criar narrativas poderosas e transformadoras.
A maratona proposta por Felipe Sales na “Trilogia Wesker” demandava um elenco com a resistência de um fundista e a minúcia de um artesão. Atrizes como Nanda Versolato e Emília Helena foram pilares, mostrando a erosão sutil e a transformação silenciosa de uma família da classe trabalhadora ao longo dos anos. Seu estilo de naturalismo íntimo fazia da rotina e do cansaço matéria dramática. A esse núcleo, Raul Negreiros trouxe uma energia vital e contrastante ao viver Ronnie Kahn, o jovem pintor e ativista político. Seu personagem encarna o conflito entre o idealismo artístico e revolucionário e as rígidas expectativas sociais e familiares. A atuação de Negreiros comunica frustração, mas também a urgência e a paixão da juventude, criando o ponto de tensão necessário que questiona e desafia o status quo representado pelos demais. Juntos, esse conjunto constrói uma epopeia do ordinário, onde a luta se dá tanto na persistência do dia a dia quanto no fogo dos ideais.
Para construir seu mosaico da principal avenida de São Paulo, Felipe Hirsch concebeu um elenco-coral de versatilidade extrema. A exigência era clara: cada ator seria um canal para dezenas das vozes anônimas que compõem a cidade. Dentro desse coletivo, alguns fios narrativos ganharam destaque pela potência de sua entrega. Marat Descartes construiu um protagonismo orgânico e comovente como um homem demitido em perambulação desesperada, um anti-herói urbano. Amanda Lyra, por sua vez, destacou-se pela capacidade de, em meio a rápidas transformações, criar pequenas epifanias de verdade em seus diversos personagens. O “realismo fragmentado” de Hirsch esbanjou talentos: Fernando Sampaio, Georgette Fadel, Kauê Persona, Lee Taylor, Verônica Valentinno… Não temos nem roupa para isso!
No centro do tenso debate moral de “A Médica”, a personagem da Dra. Ruth Wolff exigia uma atriz que sustentasse contradições sem pedir simpatia fácil. Clara Carvalho entregou uma performance magistralmente contida e complexa, construindo uma médica cerebral e ética, mas emocionalmente isolada. Seu trabalho de precisão foi fundamental para evitar o maniqueísmo. Ao seu redor, Nelson Baskerville montou um elenco que funcionava como as diversas facetas de um julgamento. Adriana Lessa e César Mello, em papéis-chave, encarnaram com força plausível os lados opostos do conflito, representando a pressão institucional, a dor familiar ou a defesa de convicções. A atuação geral, em chave de realismo psicológico agudo, transformou o palco em um tribunal da alma, onde cada personagem, com suas convicções plenamente vividas, forçava o espectador a um incômodo exercício de reflexão ética.
Na montagem do clássico de Nelson Rodrigues, Joana Medeiros priorizou a criação de um organismo cênico único em vez de atuações isoladas. O elenco — que incluía a própria diretora — operou como uma engrenagem de energia grotesca e vigor físico. Herdada da tradição do Teatro Oficina, a interpretação amplifica a potência corporal e vocal, transformando os atores em vetores de uma força coletiva que expõe, pelo excesso, o submundo de desejos e a hipocrisia da família brasileira. A verdade da encenação emana precisamente dessa intensidade orgânica e simbólica do conjunto. No centro desse turbilhão, Victor Rosa e seu “charme desconcertante” traiu, seduziu, aliciou e terminou suspenso fisicamente no teto do teatro; um sacrifício cênico que ficará gravado na trajetória do ator.
A montagem ganhou vida na interpretação de Sandra Corveloni, que equilibrou com precisão a leveza e o declínio de Liuba. Diferentes gerações de atores preencheram o palco do Teatro Anchieta e a passarela que avançava sobre a plateia. O elenco jovem fez o contraponto ideal à experiência dos veteranos, criando um mosaico que traduziu as diversas camadas do texto de Tchékhov. Essa reunião de escolas distintas criou uma leitura rica sobre a passagem do tempo. Um elemento central dessa engrenagem era o personagem Firs, interpretado duplamente por Luiz Amorim e José Rubens Siqueira. Com o falecimento de Siqueira durante a temporada no Sesc Consolação, a obra acabou atravessada por uma despedida real. A ausência do ator ressignificou o papel e a própria temática da peça. A finitude da história ficcional e a realidade do teatro se encontraram de forma definitiva.
Fonte ==> Folha SP

