O Oscar da democracia – 01/03/2025 – Opinião

O Oscar da democracia - 01/03/2025 - Opinião

Neste domingo (2), o Brasil pausará os trabalhos carnavalescos para acompanhar a premiação do Oscar. “Ainda Estou Aqui“, dirigido por Walter Salles, fez história como a primeira produção nacional a ser indicada a melhor filme. Com atuação impecável de Fernanda Torres —que concorre na categoria de melhor atriz, 26 anos após o feito de sua mãe, Fernanda Montenegro—, a produção já soma 40 prêmios ao redor do mundo.

Mas o verdadeiro prêmio, a maior conquista do filme, ocorreu longe dos holofotes. Em salas lotadas pelo país inteiro, mais de 5 milhões de brasileiros assistiram à história de Eunice, Rubens e sua família —a minha família. Esse é o maior público de um filme nacional após a pandemia, e a expectativa é de que continue alcançando ainda mais gente.

O pano de fundo da narrativa, por mais anacrônico que possa parecer, se tornou “polêmico” nos últimos anos com a ascensão do bolsonarismo: a ditadura militar que se instalou por 21 anos em nosso país, fechou o Congresso Nacional, censurou a imprensa e perseguiu, prendeu, torturou e assassinou milhares de brasileiros. Mas o filme, na verdade, é sobre uma família. Uma família como milhões de outras famílias brasileiras —cada uma no seu contexto, com suas condições mais ou menos confortáveis, é inegável— que se juntam com amigos, se divertem, cantam, dançam, choram. Famílias e amigos que se cuidam, se protegem, se amam. Seja na zona sul do Rio ou na periferia, todos os brasileiros conseguem se conectar com esse sentimento.

A partir desse núcleo vital da sociedade, o filme mostra o que acontece com os valores familiares quando se vive uma ditadura, com a possibilidade de o Estado invadir uma casa, sequestrar um indivíduo, um pai de família, sem nenhuma explicação —apenas por ele defender, pacífica e democraticamente, valores diferentes daqueles que tomaram o poder—, e levá-lo a um centro do regime, torturá-lo e matá-lo. Diante desse cenário atroz, não há como qualquer pessoa que defenda os valores familiares deixar de entender o que é certo e o que é errado.

Minha avó Eunice nos ensinou que jamais poderíamos nos vitimizar, individualizar o que aconteceu em busca de vingança, mas sim transformar a nossa história em uma luta coletiva pela construção de um país onde esse tipo de barbárie nunca mais fosse possível. Ela dizia que o verdadeiro crime havia sido cometido contra o Brasil, não contra nós. E que assim como existe o caso de Rubens Paiva, que ganhou atenção da mídia, existem milhares de outros desconhecidos, silenciados, outras milhares de famílias dilaceradas pelos horrores da ditadura, e cuja dor é igualmente importante.

Ainda hoje, em tempos democráticos, o ensinamento de Eunice segue ressoando e nos toca profundamente. Amarildo foi assassinado pela polícia do Rio. Marielle foi executada por sua atuação política —e a investigação mostrou envolvimentos de um conselheiro do Tribunal de Contas, de um deputado federal e do chefe da Polícia Civil. A violência de Estado segue sendo perpetuada pelos saudosistas dos anos de chumbo, afetando principalmente os pretos e pobres.

Poder traduzir esse anseio por justiça, através do talento de artistas brasileiros, a milhões de pessoas que em muitos casos não viveram os tempos da ditadura, é um prêmio maior do que qualquer estatueta.

A democracia é um valor que deveria ser universal, independentemente de ideologia —está acima de esquerda e direita. E o filme acerta em transmitir isso: é um manifesto pela união. Une os espectadores em torno da democracia, da família, da luta por um Brasil melhor. E nos lembra do nosso compromisso com o futuro do país, o que é sempre fundamental, mas ainda mais importante quando um ex-presidente foi eleito dizendo que torturadores eram heróis nacionais, e que, depois de derrotado no voto, tramou com os chefes das Forças Armadas uma ação para impedir a transição de poder.

Meus avós dedicaram sua vida à luta pelos valores democráticos, e ver que esta história está sendo contada e servindo ao propósito que eles acreditavam é motivo de enorme honra e orgulho para nós. Que a vida deles possa servir para dar visibilidade a outras lutas e a infundir nas novas gerações o respeito incondicional pela democracia. E que o sucesso do filme possa servir de veículo para essa mensagem —independentemente do que aconteça neste domingo, o Oscar da democracia ele já levou.

Agora resta vestir a camisa do nosso país e torcer para que, na segunda-feira (3), o Brasil possa acordar sendo conhecido como o país do futebol, do Carnaval, da democracia e do cinema.

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Fonte ==> Folha SP

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