A história de resiliência do fundador da Lego

Ole Kirk o fundador da marcenaria e futura fábrica de brinquedos Lego

A história de Ole Kirk Kristiansen, um carpinteiro que quase perdeu tudo em incêndios e falências ao longo da vida, é a prova viva de que, muitas vezes, é preciso determinação e resiliência fora do comum para chegar ao sucesso. Criador de uma das principais marcas de brinquedo do mundo, ele não viveu para ver o triunfo de uma de suas invenções, mas cada passo fez dele uma peça fundamental no enredo dessa história.

Décimo filho de doze irmãos, Ole cresceu em uma família modesta em Filskov, na península de Jutlândia, na Dinamarca. Desde a primeira infância, quando cuidava de ovelhas e vacas em fazendas vizinhas para ajudar no sustento da família, à primeira adolescência, quando aprendeu o ofício da carpintaria, ele se tornaria incansável em alcançar a excelência, explícita no lema “somente o melhor é bom o suficiente”.

Após concluir seu período como aprendiz, Ole Kirk cumpriu o serviço militar como soldado de infantaria na Cidadela de Copenhague. Entre 1914 e 1916 se dividiu entre o trabalho em uma fábrica de produtos de madeira na Noruega e no exército dinamarquês. Em fevereiro de 1916, com 24 anos, comprou a Oficina de Carpintaria e Marcenaria de Billund, um vilarejo na Dinamarca, seu primeiro empreendimento. No mesmo ano, casou-se com a norueguesa Kristine Sørensen. O casal teve quatro filhos: Johannes, Karl Georg, Godtfred e Gerhardt.

A carpintaria de Billund, o trabalho junto à comunidade e o primeiro revés

À frente da carpintaria, Ole Kirk produzia portas, janelas, armários de cozinha, guarda-roupas, caixões, cômodas e carrocerias para carroças, além de participar de projetos maiores na comunidade. Um deles, a reconstrução da igreja em Skjoldberg que, apesar de lhe render pouco financeiramente, foi visto pelo empreendedor como “uma boa causa”.

De fé cristã, o casal era ativo na comunidade local e tinha uma vida simples, dedicada a cuidar da melhor forma possível do que lhe foi concedido. Ole Kirk ensinava na escola de artesanato local e participava da escola dominical. O casal se tornou membro da Associação da Igreja para a Missão Interior.

A fé e a resiliência seriam imprescindíveis para que Ole conseguisse se reerguer após períodos difíceis. Em 1924, a família sofreu o primeiro revés: enquanto os pais tiravam uma soneca, os filhos Godtfred (4 anos) e Karl Georg (5) estavam brincando e atearam fogo acidentalmente em pedaços de madeira. As chamas se espalham rapidamente e acabam por consumir a casa e a carpintaria.

No mesmo ano, Ole Kirk contratou o arquiteto Jesper Jespersen para construir sua nova casa, com destaque para a excelência da artesania. A residência, hoje conhecida como a casa de Ole Kirk, exibia a única calçada de concreto em Billund à época, ladeada pelas estátuas de dois leões junto à porta de entrada.

Ole Kirk o fundador da marcenaria e futura fábrica de brinquedos Lego (Foto: Autor desconhecido/WikimediaCommons)

Nova fábrica com mão de obra expandida

Após o incêndio, Ole Kirk investiu ainda mais na fábrica e, nos anos seguintes, chegou a contratar mão de obra extra para expandir os negócios. Sua pequena força de trabalho, com sete funcionários, estava focada em produzir objetos para o lar e no restauro de prédios antigos, bem como em construir edificações.

Na década de 1930, no entanto, a quebra da bolsa de Nova York trouxe consequências para negócios em todo o mundo. Restrições às importações impostas pelos Estados Unidos e pelo Reino Unido levaram a crise diretamente às comunidades agrícolas dinamarquesas. Os preços da manteiga e do bacon caíram drasticamente e, como esses produtos representavam grande parte das exportações, a vida se tornou muito difícil para os agricultores da Dinamarca. Muitos deles se viram forçados a abandonar suas fazendas.

A crise econômica trouxe sérias consequências para Ole Kirk, já que seus principais clientes, os agricultores e pequenos proprietários rurais locais, foram duramente afetados. Em 1931, Ole demitiu seu último aprendiz. Em 1932, um grande revés: a esposa de Ole Kirk morre e ele fica responsável pela criação dos quatro filhos e pela gestão da fábrica.

No mesmo ano, em uma revista da Associação Nacional para Empresas Dinamarquesas, Ole lê um anúncio sobre a fabricação de brinquedos. Decidiu incorporá-los à sua produção, embora desaconselhado pela família e conhecidos. Quando solicitado para ser o fiador de um empréstimo para financiar a fábrica, um dos irmãos de Ole Kirk chegou a questioná-lo se ele não teria algo mais útil para fazer. Ele quitaria o empréstimo em 1939.

Nenhuma perda era capaz de solapar o espírito de Ole Kirk. Em suas memórias, ele relata que, ainda no ano de 1932, olhava para o futuro com esperança, mas que, em dois meses, seu mundo havia desmoronado. “Estávamos passando por um momento difícil – mas foi bom que não conseguíssemos prever o que nos aguardava. Durante o verão, nos pediram para fazer brinquedos para Jens W. Olesen, em Fredericia, e, como não tínhamos outro trabalho, consideramos isso uma dádiva de Deus”, disse.

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Concurso para escolher o nome da marca

Em 1934, Ole Kirk decidiu que a companhia deveria mudar de nome e organizou um concurso em sua fábrica para obter as sugestões. Ele próprio venceu a competição, com o nome proveniente da expressão “jogar bem” em dinamarquês: Leg Godt. Ao abreviar as palavras, surgiu o nome da marca, Lego, que foi utilizado pela primeira vez em janeiro de 1936.

A partir da década de 1930, o terceiro filho de Ole, Godtfred Kirk Christiansen – ele trocou a grafia do sobrenome em 1970 – se envolve cada vez mais nas atividades da fábrica. Em um episódio, quando tentava cortar custos aplicando duas em vez de três camadas de verniz em patos de madeira fabricados para a Cooperativa Dinamarquesa, Godtfred teve que refazer todo o trabalho, sem qualquer ajuda, por ordens do pai. “Foi uma lição para mim sobre o significado de qualidade”, disse posteriormente.

Assim como ocorrera na Grande Depressão, a Lego conseguiu se manter durante a Segunda Guerra Mundial, mesmo com a ocupação nazista da Dinamarca. Em 1942, um outro episódio marcaria a história da fábrica: um curto-circuito causou um incêndio elétrico e, mais uma vez, o fogo levou à perda total da fábrica, incluindo todo o estoque e os projetos. Dessa vez, Ole Kirk teria quase desistido, mas decidiu reconstruir a fábrica. Em 1944, ela foi reinaugurada e passou a contar com uma linha de montagem.

Em 1947, a Lego tornou-se a primeira fabricante de brinquedos na Dinamarca a comprar uma máquina de moldagem por injeção de plástico – o investimento representou mais que o dobro dos lucros do ano anterior. A companhia se tornou lucrativa com seus mais de 200 modelos de brinquedos feitos em plástico e madeira.

Entra em cena o “tijolo de ligação automática”, o bloco da Lego

Em 1949, a empresa produziu um novo produto de plástico chamado Tijolo de Ligação Automática (Automatic Binding Brick). O filho de Ole Kirk, Godtfred, que havia sido recém-nomeado diretor-geral júnior da fábrica, passaria os dez anos seguintes desenvolvendo o produto. Em 1957 ele se tornou diretor-geral da empresa.

Em janeiro de 1958, o design do bloco Lego foi patenteado e, poucos meses depois, Godtfred desenvolveu o bloco como base para o “sistema de jogo” da empresa, que é o alicerce dos blocos de construção da Lego que são vendidos até hoje.

Em março daquele ano, seu pai, Ole Kirk, morreu de ataque cardíaco em Billund. E o destino, uma vez mais, foi caprichoso: um terceiro incêndio destruiu a fábrica e todo o seu conteúdo. O revés levaria a empresa a seguir em frente fabricando apenas brinquedos de plástico.

O protótipo para patenteamento dos blocos de construçãoO protótipo para patenteamento dos blocos de construção (Foto: Christiansen Godtfred Kirk/Wikimedia Commons)

Novas diretrizes e nova gestão entre os anos 1960 e 1970

Em 1963 Godtfred anunciou as dez características da Perspectiva de Sistema Lego, que constituíram e são o coração da companhia até os dias de hoje:

  • Possibilidades de brincadeira ilimitadas
  • Para meninas e meninos
  • Entusiasmo para todas as idades
  • Brinque o ano todo
  • Brincadeira estimulante e harmoniosa
  • Horas infinitas de diversão
  • Imaginação, criatividade e desenvolvimento
  • Mais Lego, mais possibilidades de brincadeira
  • Sempre atual
  • Segurança e qualidade

Os anos 1970 marcam uma nova transição na gestão da Lego, quando o filho de Godtfred deixa a direção-geral. Em 1973, ele assume como presidente do Conselho de Administração da Lego System A/S e passa o cargo anterior para Vagn Holck Andersen, que permanece na posição até 1979, servindo como elo entre Godtfred Kirk e seu filho, Kjeld Kirk Kristiansen, que assumiu o cargo de CEO em 1979.

Mesmo com o afastamento de Godtfred da gestão diária, sua presença continuou sendo sentida na empresa. Funcionários da Lego daquela época lembram-se de como era comum encontrá-lo caminhando pelos escritórios no final da tarde, atualizando-se sobre a situação da empresa. Godtfred Kirk ocupou o cargo de presidente do Conselho de Administração até abril de 1993. Ele morreu em julho de 1995.

Dagny Holm e as esculturas em Lego

Sobrinha de Ole Kirk, Dagny Holm Jensen sempre teve uma capacidade excepcional de expressar sua criatividade. Em meados da década de 1930, aos 19 anos, ela trabalhou na fábrica de seu tio em Billund. Durante os três meses em que ficou na companhia, desenhou diversos brinquedos, incluindo um trem em madeira. Dagny retornaria à Lego 30 anos depois, em 1961, após a morte de seu marido.

Ela então encarou o desafio de adaptar seus dons artísticos – havia se formado em escultura clássica – aos blocos da Lego. Em 1963, ela se tornou uma figura central no desenho e produção dos modelos que integrariam o parque Legoland em Billund. Ela construiu cenários urbanos, castelos, animais e personagens fictícios, além de receber sua própria área na antiga fábrica de carpintaria para criar seus modelos.

Em 1967, foi responsável por projetar um trem de Lego para o Tivoli, no centro de Copenhague. O trem transportava os visitantes em um passeio pelos jardins. No mesmo ano, a peça integrou o Desfile de Ação de Graças da Macy’s, em Nova York. Quando o Legoland Billund foi inaugurado no ano seguinte, o trem ganhou seus próprios trilhos – e até os dias de hoje uma peça semelhante ao original de Dagny continua a transportar milhares de visitantes pelo parque todos os anos.

Dagny foi a designer-chefe de modelos da Lego até 1986, quando se aposentou aos 70 anos. Ela faleceu no dia 1o de março de 2004.

O trem da Lego na Legoland de BillundO trem da Lego na Legoland de Billund. (Foto: Legoland Billund Resort/Wikimedia Commons)

Além do parque original em Billund, a Lego atualmente possui outros 10 Legolands ao redor do mundo, na Califórnia, Flórida, Nova York, Malásia, Dubai, Inglaterra, Japão, Coreia, Xangai e Alemanha. Os produtos da marca são vendidos em mais de 130 países. Em 2024, a receita do grupo cresceu 13% e as vendas ao consumidor tiveram um incremento de 12%, enquanto o setor de brinquedos, em geral, apresentou queda de 1%. Atualmente, o portfólio da marca inclui 840 produtos para todas as idades.



Fonte ==> Gazeta do Povo.com.br

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