A transformação do jornalismo em sete pontos – 03/12/2025 – Rodrigo Tavares

Fachada do prédio do The New York Times, em Nova York

Na entrada da escola de jornalismo da Universidade Columbia, em Nova York, há uma placa de bronze na parede com uma citação de Joseph Pulitzer de 1904: “Uma imprensa cínica, mercenária e demagógica acabará por produzir um povo tão vil quanto ela própria. O poder de moldar o futuro da República estará nas mãos dos jornalistas das gerações futuras.”

O fundador da escola pensou o jornalismo como instituição humana e moral. Mas a inteligência artificial (IA), obriga-a a tornar-se também uma instituição tecnológica. A partir desse choque, tudo se reorganiza.

1. Serão as máquinas a produzir a maioria das hard news. Hoje, a IA já produz notícias de baixa complexidade interpretativa e fundamentadas por dados, como previsões meteorológicas, cotações bolsistas e resultados financeiros, estatísticas policiais, resumos esportivos e atualizações de trânsito. Empresas de mídia como Bloomberg, ESPN, Forbes e Associated Press já transformam automaticamente estes dados em notícias, libertando o jornalista humano das tarefas de peixe em aquário. O que antes exigia um jornalista-humano, hoje demanda apenas uma API (Interface de Programação de Aplicações), ou seja, tudo o que é repetitivo e descritivo será quase integralmente automatizado.

Mas o perímetro das hard news escritas por não-humanos vai alargar-se. À medida que mais áreas da vida pública e privada forem capturadas por sensores, sistemas digitais do Estado e redes sociais, a IA passará a produzir uma fatia crescente destas notícias do dia-a-dia. Se hoje modelos de IA (ChatGPT, Claude, Gemini) apenas capturam informações do passado disponíveis publicamente, os novos sistemas de IA irão assimilar dados em tempo real, oriundos dos equipamentos conectados que usamos nas nossas atividades diárias (carros, computadores, celulares, eletrodomésticos, câmeras de vídeo). Elon Musk, por exemplo, deverá anunciar em breve um novo modelo de IA treinado com dados instantâneos provenientes das suas empresas. Cada Tesla pode dar um furo. Um tsunami na Tailândia poderá ter cobertura imediata pela Starlink ou SpaceX, antes mesmo de qualquer repórter chegar ao local.

2. As hard news que as máquinas não conseguirem produzir tenderão a ser redigidas sobretudo pelas grandes agências de notícias, como a Reuters ou a Associated Press. Perante um terramoto na Turquia, por exemplo, o leitor brasileiro procura essencialmente a informação básica do acontecimento (onde, quando, intensidade, número de vítimas).

Essa informação não precisa de ser apurada de forma redundante por dezenas de redações nacionais. Replicar esse esforço é, em grande medida, uma perda de recursos humanos e financeiros num setor já fragilizado.

3. Num mundo de abundância quase infinita de informação e de produção automatizada em larga escala, a atividade jornalística estará cada vez mais centrada na verificação (validar fontes, auditar dados, detectar manipulações, contextualizar), refletindo o compromisso matricial do jornalismo com a verdade. Como afirmou Alberto Dines, “jornalismo é serviço público, não espetáculo.” A avalanche informacional, porém, não tem precedentes na história. Serão, a cada minuto, bilhões de vídeos, áudios, textos, imagens, dados sensoriais, comunicados automatizados, estatísticas em tempo real e conteúdos gerados por IA, todos disputando simultaneamente atenção e credibilidade. A maioria serão falsos. Qual o papel das empresas de mídia? Serão, sobretudo, vendedoras de selos de garantia e de confiabilidade. A praia a que chega, de língua de fora, o náufrago que quase se afogou num mar de informação falsa.

4. As redações tornam-se “laboratórios de inteligência” com menos volume e mais densidade cognitiva. A função central deixa de ser apenas descrever o acontecimento e passa a ser explicar suas causas, verificar seus fundamentos empíricos e analisar seus impactos estruturais no médio e no longo prazo. O diferencial competitivo deixa de ser a velocidade de publicação e passa a ser a capacidade de análise, contextualização e validação cruzada da informação. Os muros divisórios entre jornais, institutos de pesquisa e empresas de inteligência estratégica ficarão diluídos. Jornais contratarão cientistas sociais e pesquisadores com doutorado.

5. A fronteira entre empresas de mídia e empresas de tecnologia poderá desaparecer. Mídia vertical e software vertical tendem a fundir-se num mesmo modelo de negócio. Publicações de nicho passarão a criar também produtos próprios, como bases de dados, plataformas de monitoramento, painéis analíticos e ferramentas de inteligência. E empresas de software terão braços permanentes de conteúdo. Esse movimento já está em curso. A Bloomberg hoje é, antes de tudo, uma empresa de software e dados financeiros. PitchBook, CB Insights, S&P Global, LexisNexis e Westlaw combinam jornalismo, bases de dados proprietárias e plataformas de análise num único serviço. Na prática, vender notícia e vender ferramenta passam a ser partes da mesma operação. O conteúdo torna-se a porta de entrada do produto, e o produto passa a ser a forma estrutural de monetização da informação.

6. Tudo será multiplataforma; um artigo longo para quem gosta de ler, um resumo em áudio para quem está dirigindo, ou um vídeo curto para gerações mais novas, tudo gerado a partir da mesma reportagem base e tudo feito com apoio de IA, no mesmo fluxo de apuração e edição. Os jornalistas (e colunistas) deixarão de ser os confrades do texto para serem profissionais em síntese multimodal, integrando texto, áudio, vídeo. Os velhos jornalistas do single malt, do grupo literário Sabadoyle e do texto escrito com a ponta dos dedos indicadores, não sobreviverão.

7. Confiança será central. E pessoas confiam em pessoas. Os conteúdos noticiosos e analíticos tenderão a ser cada vez mais personalizados, assinados, expostos ao processo de apuração e ancorados em formatos de presença contínua, como transmissões ao vivo, bastidores abertos e prestação de contas em tempo real. A humanização, inclusive com a exposição de dúvidas, revisões e eventuais erros, passará a ser um mecanismo deliberado de construção de credibilidade. A transparência do processo tornar-se-á tão relevante quanto a exatidão do resultado final. O jornalista passa a ser aquele que assina cada notícia como uma escritura pública.

Em regime circular, a transformação do jornalismo devolve-nos ao ponto de partida. A tecnologia pode ter mudado, a escala pode ser incomparavelmente maior e a velocidade pode já não ser humana, mas o núcleo do problema permanece o mesmo que Pulitzer formulou há mais de um século. A República e a sua imprensa continuam a se erguer ou a cair juntas.



Fonte ==> Folha SP

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