A peça “A Máquina”, de Adriana e João Falcão, é reconhecida pela sua fusão de fábula nordestina e realismo mágico, apresentando uma estrutura dramática inovadora. Na fictícia cidade de Nordestina, marcada pela estagnação e pelo êxodo, o sonhador Antônio promete trazer o mundo até sua amada Karina. Para cumprir essa promessa, ele adquire o capacidade de viajar no tempo, usando essa máquina como um dispositivo de desejo e salvação.
A encenação do Coletivo Ocutá, no entanto, vai além de uma simples remontagem, constituindo-se em intervenção política. O grupo, cujo nome (“Okutá”) evoca a pedra de assentamento dos orixás – símbolo de firmeza e ancestralidade –, utiliza a estrutura maleável da peça para descolonizar seu repertório. Se a obra original contrapõe a estagnação do interior à promessa da cidade grande, a Ocutá questiona o próprio conceito do “mundo” que Antônio busca, substituindo a busca romântica individual por uma afirmação política e coletiva.
Um dado biográfico acrescenta uma camada de metateatralidade a essa releitura: o papel de Karina é interpretado por Agnes Brichta, filha de Vladimir Brichta, um dos atores que viveu Antônio na montagem original. Essa escolha de elenco cria um diálogo simbólico entre o passado e o presente da própria obra, reforçando o tema central da passagem do tempo e do resgate da memória. A filha de um “Antônio” do passado agora é a “Karina” do futuro, materializando no palco o “encontro de uma pessoa em etapas diferentes da vida” que a peça propõe.
Essa camada dialoga perfeitamente com a subversão central proposta pelo coletivo. Onde o texto original via uma realidade expandida pela ciência e pela subjetividade, a Ocutá insere a cosmologia afro-brasileira. Nela, o tempo não é linear, mas ritualisticamente acessível, e a mente que redefine os limites do universo é a mente ancestral e coletiva. O cronotopo flexível da peça torna-se, assim, o veículo para confrontar o racismo estrutural.
Essa visão se materializa na cena através de uma metodologia centrada no corpo. A preparação rítmica do coletivo, inspirada em suas pesquisas, se opõe diretamente ao “corpo-máquina” rigidamente codificado pela tradição colonial. O ritmo afro-brasileiro liberta o corpo, transformando-o em uma fonte de energia cultural e histórica que injeta movimento na estagnação de Nordestina.
Dessa forma, a montagem da Ocutá hackeia a obra canônica para reprogramá-la com novos sentidos. A fábula individualista é transposta em uma narrativa de resistência coletiva, onde a máquina do tempo se torna um mecanismo de mudança social. O palco se transforma em um lugar de assentamento ritual, afirmando a negritude e projetando a estética afro-brasileira como uma força central na reinvenção da dramaturgia nacional. A presença de Agnes Brichta, nesse contexto, é a prova viva de que o passado não está petrificado, mas é um território ativo que pode ser revisitado e ressignificado.
Três perguntas para…
… Agnes Brichta
Você interpreta Karina em uma releitura que dialoga com a montagem original, na qual seu pai, Vladimir Brichta, foi um dos Antônios. Como é para você construir esse personagem carregando essa história familiar? A sensação é de continuidade, de resposta ou de um reencontro com uma memória afetiva?
A minha relação com essa peça foi de apaixonamento desde que assisti uma leitura comemorativa dez anos depois da montagem. Peguei o texto de João Falcão naquela noite e nunca mais parei de revisitar. A minha paixão foi crescendo e se tornou a peça que mais li. Até trabalho de faculdade de psicologia fiz com a análise de dramaturgia. Então finalmente estar contando essa história é o ápice dessa minha paixão de anos, a paixão de contar essa história. Nunca imaginei que seria dessa forma tão incrível: com esses colegas de elenco tão sensacionais e com Gustavo e João Falcão na direção. Sonhei muito por muitos anos e a realidade ainda me surpreendeu para melhor.
O Ocutá trabalha com uma preparação corporal baseada no ritmo e na simbologia afro-brasileira, como resposta ao pensamento colonial. Como foi para você, como artista, mergulhar nessa metodologia?
Desde que assisti o coletivo Ocutá em “O Avesso da Pele”, fiquei eletrizada. Eles são sensacionais e lembro que o repertório corporal deles foi algo que quase me fez pular da cadeira no teatro. Fiquei fã deles de cara. O processo corporal de “A Máquina”, no entanto, teve outras referências. A peça exige uma plasticidade circense que já me interessava muito (faço acrobacia em tecido há alguns anos e tenho certo domínio). Sobre a dança que tivemos, ainda que não seja meu forte, corri muito atrás das nossas referências como o frevo, maracatu e cavalo marinho com nosso preparador de dança Alisson Lima. É um espetáculo de corpo brincante, era o que dizíamos nos ensaios.
Para você, qual é a mensagem de futuro que essa encenação, e a sua Karina em particular, deseja semear no presente do teatro brasileiro?
Eu sei que pára mim essa peça é muito valiosa porque dissemina o encantamento com a vida, mesmo em seu estado mais simples. É um espetáculo que carrega amor, leveza e uma criatividade refrescante, apontando poesia no dia a dia. Poderia ser apenas uma história de amor entre um casal, mas as escolhas das palavras de Adriana Falcão e a encenação de João Falcão mostram que até momentos simples da dramaturgia podem ser lindos.
Acho isso necessário. Acho que faz o espectador sair com essa ideia de que é possível se apaixonar pelo dia a dia, que há beleza no que não é épico também. Desacelera uma pressa insuportável que vivemos hoje em dia e desinfla também essa a urgência em perseguir até a exaustão o extraordinário. O ordinário é lindo também e o amor (não falo aqui do amor entre duas pessoas mas o amor como um todo) é extremamente importante nesse processo de encantar-se com o que já nos rodeia.
Teatroiquè – rua Iquiririm, 110, Butantã, região oeste. Qui. e sex., 21h. Sáb., 18h e 21h. Dom., 18h. Até 14/12. Duração: 70 minutos. A partir de R$ 75 (meia-entrada) em sympla.com.br
Fonte ==> Folha SP
 
				 
				 
											 
         
         
         
         
         
         
        