Todas as noites, antes de dormir, a artista Ana Amorim desenha um “mapa mental” com os caminhos percorridos ao longo do dia. “A vida não tem como capturar. É impossível”, diz. A ideia, segundo ela, era simples: fazer um registro, como um carimbo que atesta: “Hoje eu vivi”.
A prática começou em 1988, durante o mestrado na Universidade de Ohio, nos Estados Unidos. À época, Ana produzia os mapas no estúdio da universidade. Até perceber que havia algo errado.
“Eu desenhava o mapa do dia todo e depois ia para casa. Mas notei que era uma mentira: não tinha registrado o trajeto do estúdio até minha casa. No começo pensei: ‘Bom, então, eu desenho amanhã’. Mas isso era absurdo. Seria o mapa de ontem. E eu não posso desenhar hoje o que vivi ontem”, diz Ana, ao NeoFeed.
Ela abandonou o estúdio, transferiu seus materiais para a cozinha de casa e seguiu dali com a rotina. Essa ética radical de fidelidade à própria experiência atravessa toda a sua produção.
Hoje, com 68 anos, Ana tem sua trajetória celebrada na exposição Ana Amorim | Mapas Mentais, em cartaz no MAC USP. É a maior mostra já realizada sobre sua obra: cerca de 70 trabalhos, a maioria inédita ao grande público.
Inéditos porque, durante muito tempo, a artista se recusou a exibir suas obras de acordo com as exigências do mercado. Por 16 anos, vigorou em sua prática o Contrato de Arte, documento de 2001, no qual ela estabelecia os termos éticos e operacionais de sua produção.
Por ele, Ana rejeitava qualquer associação de seu trabalho a logotipos, instituições ou fins comerciais. Uma crítica direta às estruturas do sistema da arte.
Muito antes disso, em 1988, Ana já havia redigido as chamadas Decisões Conceituais, manifesto no qual definia princípios rigorosos para a produção dos dez anos seguintes. Entre eles, usar materiais baratos e não vender seus trabalhos. O Contrato de Arte seria um passo além.
A artista impossível
Fiel a essa postura, recusava-se a exibir suas obras em galerias comerciais ou espaços que cobrassem entrada. Também não concedia entrevistas a jornais, alegando que textos publicados nesses veículos estariam inevitavelmente cercados de publicidade. Com isso, assumiu para si a alcunha que assina no próprio contrato: “Artista Impossível”.
“Eu acredito que a arte tem de fluir livremente”, afirma. “Quando criei o contrato, é porque os logos de mineradoras e petroleiras patrocinando exposições de arte me incomodavam muito. Essas empresas afetam profundamente a vida das pessoas.”
Ana estava disposta a sacrificar a carreira em nome de seus princípios. “Para mim, o contrato era para a vida inteira”, conta. Mas a rigidez da proposta acabou se tornando um fardo. Sua recusa sistemática em abrir concessões a levou a ser vista como uma “artista difícil”.
Levava duas vidas em paralelo: a de artista, com produção diária de trabalhos, e a de professora. No Brasil, ensinava inglês; na Inglaterra, lecionou para adolescentes com necessidades especiais. Com esses empregos, custeava as despesas pessoais e a produção de sua obra.
No fim da década de 2010, passou a se incomodar com o fato de que todo o seu trabalho poderia acabar no lixo. “Chegou um ponto em que nem doar para museus eu conseguia. Eles não queriam”, lembra.
Segundo o curador da exposição no MAC USP, Jacopo Crivelli, a resistência do sistema à obra da artista reforça justamente a pertinência do contrato. “Se o trabalho inteiro dela questiona frontalmente a lógica do sistema, não dá para esperar que o sistema a aceite pacificamente”, diz Crivelli, ao Neofeed. “O fato de ela ter sido ignorada valida a força da proposta.”
Fora do circuito institucional, Ana tentou expor seus trabalhos na casa de pessoas comuns. “Quero expor na sua sala. Me diga o tamanho do espaço e se prefere uma obra em preto ou em branco, que eu te dou um trabalho”, oferecia. As respostas, na maioria das vezes, eram negativas.
Um episódio marcante aconteceu ao pedir emprestado a uma pessoa uma obra sua para fotografá-la. Ao recebê-la, percebeu que o pacote estava ainda como havia sido entregue: intacto, sem nunca ter sido aberto.
“Ele simplesmente guardou”, conta. “Não culpo ninguém. Isso tem a ver com o sistema de valoração. As pessoas não veem o trabalho, mas o valor. É como uma bolsa da Gucci: elas nem param para pensar se gostam, só querem porque é Gucci.”
Em 2016, decidiu encerrar o projeto. No seu blog, Cartas ao Sistema de Arte, anunciou oficialmente o fim do contrato e deu início a um movimento de inserção no circuito.
A artista possível
Hoje representada pela Galeria Superfície, que deverá levar suas obras para a próxima edição da SP–Arte Rotas, entre os dias 27 e 31 de agosto, em São Paulo. Recentemente, integrou a coletiva Fullgás, dedicada à produção da chamada Geração 80, em itinerância pelas sedes do Centro Cultural Banco do Brasil.
“Projeto 183”, 2001 (Foto: Juan Barajas)

“Mapa Grande”, 2007 (Foto: Ana Pigosso)

Detalhe de “Segundo Bordado”, 2016 (Foto: Ana Pigosso)

“Segundo Bordado”, 2016 (Foto: Ana Pigosso)

Detalhe de “Quarta Grande Tela”, 2021 — Detalhe (Foto: Filipe Berndt)

“Quarta Grande Tela”, 1991 (Foto: Filipe Berndt)

Detalhe de “Bordado Dias e Minutos”, 2016 (Foto: Filipe Berndt)

“Bordado Dias e Minutos”, 2016 (Foto: Filipe Berndt)

“Quase livre do tempo”, 2021 (Foto: Filipe Berndt)

A exposição traz os livros onde a artista registrou o tempo (Foto: Filipe Berndt)

O número é o que Ana define como “localizador”: o número de horas, o número de dias que faltam para o final do ano mais a idade da artista (Foto: Reprodução)

Uma das perfomances de Ana aconteceu durante o protesto contra a votação do Marco Temporal, em 27 de setembro de 2023, em Brasília (Foto: Reprodução)
A mostra atual no MAC USP marca esse recomeço. E o local não poderia ser mais simbólico. Nas décadas de 1960 e 1970, o museu foi um dos epicentros da arte conceitual no Brasil, movimento que privilegia a ideia do artista sobre a forma final da obra. É essa lógica que atravessa toda a trajetória de Ana, que se define como artista conceitual.
Ali ela realizou também sua primeira individual, em 1991, logo após o mestrado nos Estados Unidos, quando mostrou uma de suas Grande Tela — os registros de mapas mentais, um ao lado do outro, e também de contagem de tempo feitos ao longo de um ano.
A exposição pode ser vista ainda como uma grande performance — fiel à ética de trabalho e aos princípios que guiaram quatro décadas de produção.
Logo na entrada, o texto curatorial assinado por Crivelli enfatiza esse compromisso: “Com exceção das despesas diretas do museu, não houve utilização de recursos públicos na produção, montagem e manutenção desta exposição. Todos os que trabalharam nela foram remunerados com obras da artista ou com recursos provenientes da venda de suas obras.”
A montagem é propositalmente simples: sem molduras, com uso de mobiliário já existente e obras fixadas diretamente nas paredes. Mais que gesto simbólico, uma reafirmação de autonomia da artista.
“A etiqueta é o trabalho”
A exposição apresenta um amplo panorama, com obras produzidas ao longo de 40 anos. Mas, no caso de Amorim, trata-se menos de um recorte cronológico, e sim de uma condensação de tempo vivido.
“É como se esses trabalhos surgissem do nada, carregando consigo uma quantidade imensa de segundos — para usar a unidade de medida da própria Ana — todos de uma vez”, observa Crivelli. Ele pondera que a experiência seria completamente distinta se o trabalho da artista tivesse sido exposto regularmente nas últimas décadas.
“Não digo que seria melhor ou pior. Mas seria outra coisa. Você teria memória: ‘Ah, lembro desse trabalho dos anos 1980, daquele dos 1990’. Aqui, não. É uma produção que fala do tempo. E que, ao mesmo tempo, ficou invisível por quatro décadas. É uma situação muito única”, conclui.
Entre os trabalhos mais emblemáticos está a performance Contar os segundos, apresentada em diferentes contextos. Na maioria das vezes, dura uma hora. Durante esse período, a artista dedica-se exclusivamente a contar os segundos.
“Significa que meu dia tem 23 horas, porque aquela hora em que estou contando não existe. Não posso fazer nada. Não posso me distrair. É como se fosse apagada do meu dia”, explica.
Mas talvez seja essa a hora mais intensa de todas. Ao riscar, um a um, os segundos em folhas de papel, Ana dá materialidade ao tempo. Os livros empilhados onde registrou essas horas são testemunhos de uma presença radical no agora.
A mostra inclui ainda registros recentes em vídeo da performance em situações em que o tempo se torna fator decisivo. Como durante o protesto contra a votação do Marco Temporal, em 27 de setembro de 2023, em Brasília.
Em meio às pessoas mobilizadas contra a proposta que restringe os direitos territoriais dos povos indígenas, lá estava Ana, contando os segundos. Sua presença silenciosa, como uma ampulheta viva, intensificava a percepção da urgência diante do que estava para acontecer.
Embora a exposição reúna 70 obras importantes de sua carreira, a artista adverte que o essencial não está nas paredes. “Nos meus trabalhos, é preciso ler a etiqueta. O que está na parede é só o resultado; a etiqueta é o trabalho. É ali que está a decisão conceitual. Para mim, o trabalho está na decisão de fazer”, comenta. “E essa decisão é difícil.”
Agora, ela escolheu mostrar todas as decisões difíceis que tomou nas últimas quatro décadas. E reafirmar, finalmente, sua presença.
Fonte ==> NEOFEED