O desejo de virar escritora nasceu em Baek Seung-yeon a partir de uma carta. Quando era adolescente, escreveu duas folhas A4 expressando suas mágoas com o pai. A resposta dele foi dizer que ela escrevia bem.
“Na hora, foi meio frustrante. Eu tinha juntado toda a minha coragem para abrir meu coração”, relembra a autora sul-coreana. “Ele nunca entendia o que eu sentia. Era o típico pai coreano, que tem vergonha de dizer ‘eu te amo’ para os filhos. No fim das contas, virou uma lembrança divertida”, ela diz, e um empurrão para escrever mais.
Baek lançou em 2024 seu primeiro romance, “A Loja de Cartas de Seul”, que recém-chegou ao Brasil pela Intrínseca. O livro alimenta a febre da literatura de cura, que se consolidou com obras que retratam vidas cotidianas e se passam em lugares comuns, como lojas de conveniências e livrarias, mas fictícios. A editora original quis fazer o caminho inverso e usou um endereço que já existe.
Para isso, convidou Baek para criar uma história a partir da Geulwoll, loja de materiais de cartas em Seul que oferece o serviço de penpal, no qual pessoas trocam correspondências de forma anônima. “Eu também achava que estava na hora de dar uma reinventada na literatura de cura. Com certeza haveria muitas histórias guardadas ali”, diz a autora.
Sua protagonista também vê na carta um meio de reconciliação. Hyoyeong sente que vive à sombra da irmã mais velha, tida como exemplar —mas que caiu num golpe ao tentar enriquecer rápido para ajudar a família. “Na Coreia, é comum ouvir que o primogênito deve ajudar a sustentar a casa. Essa ideia já foi bem mais forte no passado, mas ainda persiste um pouco”, explica Baek.
Envergonhada, a primogênita foge, mas envia correspondências para a irmã, que se recusa a lê-las. Quando pensa em escrever uma resposta, trava na frente do papel. Hyoyeong larga o sonho de cineasta e acaba arranjando emprego numa loja de cartas, escondida no quarto andar de um prédio cinzento.
Das cores da parede ao clima tranquilo do bairro, tudo partiu de lugares reais. Isso ajudou a descrever detalhes, diz a autora, que leu cartas e registros feitas ao longo dos anos para construir os pequenos episódios do dia a dia.
Os personagens são fictícios, ela garante. Entre os destinatários que não se conhecem, estão estudante que não sabe qual carreira seguir, contador que desistiu do sonho de ser escritor, marido que escreve para a esposa que morreu, até celebridade.
Baek usou ela mesma o serviço de penpal. Nas mensagens trocadas com uma estudante do ensino fundamental, indicou um livro que havia lido na escola, de um brasileiro: “O Alquimista”, de Paulo Coelho. “Fazia um bom tempo que eu não conversava com alguém dessa idade”.
“Foi justamente o anonimato que tornou essa troca mais especial e permitiu que conversássemos sem qualquer julgamento”, afirma. “É inevitável cair no hábito de avaliar tudo. A mídia vive nos colocando em situações de comparação. Mas com o penpal ninguém começa uma conversa já fazendo julgamentos sobre a idade, orientação sexual, profissão ou aparência. Esse tipo de espaço é um respiro necessário.”
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Na era digital, que agiliza qualquer comunicação, escrever uma carta é tudo menos prático, diz a autora. “É preciso pensar nas palavras com calma, evitar erros, escrever à mão com todo o cuidado. Se fosse uma mensagem de celular, por mais longa que fosse, não levaria nem cinco minutos, né?”
São essas etapas, no entanto, que tornam uma carta tão especial. “Assim como dar flores a alguém. Para escrever, precisamos reviver as lembranças que temos com a pessoa. Cada palavra, letrinha por letrinha, é traçada com cuidado, pensando em como o outro vai ler. É o tipo de coisa que não cabe em uma mensagem de um segundo.”
Na Coreia do Sul, é mais comum enviar correspondências em datas comemorativas, explica a autora. Há um grupo em particular que ajuda a manter viva essa tradição: os homens que prestam o serviço militar obrigatório. Eles atualizam a família e trocam cartas de amor, já que o uso de celular no expediente é restrito.
“Mesmo com o avanço do mundo digital, não acho que a vida offline tenha diminuído tanto assim”, ela pondera. “Os coreanos são pessoas que adoram sair e se divertir. No fim, acho que os mundos online e offline não se anulam, mas se complementam.”
É por isso que a Geulwoll original fez sucesso ao surgir, em 2019, no bairro de Yeonhui. Dois anos depois, ganhou uma segunda unidade, em Seongsu. “A Loja de Cartas de Seul” recebeu propostas de publicação de oito países antes mesmo de ser lançado. Uma continuação foi publicada neste ano, ainda sem previsão de chegar por aqui.
Para Baek, livros do gênero fazem sucesso porque, no fim, todo mundo precisa de uma pausa. “Diante do turbilhão de informações que nos consome, ler uma ficção de cura nos traz um certo alívio, como se dissesse: ‘Tudo bem parar por um momento’.”
“Mas também fico pensando: será que o fato de as pessoas estarem buscando conforto nos livros não significa que talvez estejam recebendo pouco conforto na vida real?”, questiona a escritora. “Nesses momentos, que tal tentar dar o primeiro passo, abrir o coração e escrever uma carta?”
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Fonte ==> Folha SP

