Jacqueline Muniz *
Recentemente, em uma entrevista a um jornal de grande circulação no Rio de Janeiro, eu disse que não se pode jogar na rua um guarda municipal (GM) nu, sozinho, com uma pistola no coldre, diante da vaga proposta do prefeito de criar uma “força de segurança municipal”. Mas por quê? Trago aqui uma lição básica aprendida, a duras penas, com a história de golpismos, violências e violações nas democracias ocidentais e, ainda, essencial para a sustentação do Estado Democrático de Direito.
A ilusão do improviso nas burocracias armadas.
Não se deve improvisar ou fazer gambiarras com dispositivos estatais de controle social que cortam, ferem, deixam danos permanentes e podem, no limite, matar em nome de alguma interpretação particularizada da lei e da ordem. Bem, faz tempo que nossas mães já diziam isso com outras palavras quando nos ensinavam a não brincar com as facas de cozinha, as tesouras e o “trezoitão” mal guardado do parente valentão.
É da natureza de qualquer meio de força dispor de autonomia discricionária para dobrar vontades, decidir e agir no momento presente dos riscos e perigos reais vividos por nós em nosso dia a dia. Porém, esta autonomia armada para intervir em tempo real, muito rapidamente, pode se perverter em uma autonomização do poder de polícia que se volta contra a sociedade, proprietária deste poder delegado, e contra o Estado, responsável por administrá-lo em seu nome.
É esta emancipação predatória que dá vida a uma autarquia armada sem tutela, faz surgir um governo policial autônomo ou uma “milícia”, segundo a fala popular, que transforma governantes eleitos em seus ventríloquos, converte parlamentares em seus moleques de recado, chantageia e rivaliza com a justiça, acua a cidadania e promove o ‘crime organizado’ à condição de padrinho político e parceiro empresarial.
O perigo de uma decisão política vaga sobre meios de força
A degeneração da autonomia do agente público armado para atuar em nosso nome em uma carta branca para ele fazer o que bem entende, segundo a sua própria razão, tem um ponto político de partida. A avenida para a corrupção política do mandato da GM começa a ser aberta quando se apregoa aos 4 ventos, mas de forma genérica, quase um teste de opinião, que vai “armar a Guarda”, ou melhor, ampliar a sua capacidade coercitiva. E, mais, sem sequer oferecer à sociedade uma ideia-chave que aponte para algum rumo de reengenharia organizacional ou um projeto de força que delimite o âmbito de atuação, o alcance da ação e os contornos do poder coercitivo da GM armada em relação aos outros meios de força atuantes no mesmo território (PMERJ, PCERJ, CBERJ, POLÍCIA PENAL, DPF, DPRF, Força Nacional, Forças Armadas).
É como dizer que se vai autorizar que a espada, por sua própria conta, amplie a extensão e a profundidade do seu corte para furar e sangrar o que julgar conveniente. Ah, como este tipo de coisa agrada bastante os senhores da guerra, os mercadores da proteção e os profetas do caos que adquirem poder, prestígio, dinheiro e votos com a política de insegurança pública no Rio!
Isto é um “faz-me rir” para os alisadores de maçaneta de gabinete e os seguradores de pastas de autoridade que se transvestem de babás de políticos para transformarem a intimidade com o governante em favorecimentos pessoais. Isto é um faz-nos assustar porque espadas, uma vez autonomizadas, costumam cortar a língua da política à direita, ao centro e à esquerda e rasgar a letra da lei, tão logo ela tem seu poder coercitivo ampliado de forma populista e eleitoreira. Espadas autonomizadas costumam governar no lugar do governante e negociar mercadorias políticas com o crime organizado, como já se vê no Rio de Janeiro, nestas décadas de abandono intencional pelos políticos das éticas da responsabilidade e dos resultados produzidos.
Promessa de campanha descartável ou política pública real?
Cumprir uma promessa de campanha com apenas um anúncio preliminar e uma canetada normativa não corresponde a se comprometer com uma política municipal de segurança e uma política para a GM que até mesmo inclua arma de fogo em sua já existente gramática de armamentos. É possível se livrar de uma promessa de campanha apenas com a publicidade de uma intenção anunciada, mas “impedida” pelo álibi modinha do momento, a “disputa de narrativa”. Mas, faz-se política pública para GM que se quer armada, seja ela conservadora, liberal ou progressista com debate público, formulação, planejamento e gestão participativas a partir da construção de um projeto.
Armar uma organização ostensiva de controle e regulação sociais vai muito mais além do que ir às compras no shopping center da segurança e adquirir uma remessa de pistolas 8 mm ou .40 já autorizadas pelo Estatuto das Guardas Municipais de 2014. E, como aqui se explicita, a prefeitura ainda não tem um projeto pronto sobre “armar a guarda” para apresentar para a sociedade carioca insegura e amedrontada que responda a questões centrais:
- Por que armar a GM?
- Para fazer o quê?
- Onde e quando atuará?
- Com que meios e táticas operacionais?
- Como será controlado o uso da força?
- Quais serão os custos envolvidos?
Até agora, o que se tem para a gente avaliar é uma confusa e vaga ideia apresentada de armar a maior GM do Brasil, com 7.312 funcionários, que já é armada com armamentos menos letais. Não se tem, ainda, como saber se uma notícia normativa do poder municipal vai virar uma proposta profissional, responsável, viável e adequada à realidade da segurança pública no Rio de Janeiro ou se vai ser mais um remendo eleitoreiro para a sociedade se posicionar na condição política vulnerável de refém do medo.
Hoje, o contra e o a favor “armar a GM” estão tão impressionistas e especulativos quanto o anúncio feito pelo prefeito. Não basta ir à loja e comprar umas pistolas e dá para o GM na praça e na porta de escola. Não se improvisa com burocracias coercitivas armadas porque a maior parte de suas ações são irreversíveis. Não se ressuscita quem foi morto. Não se elimina as dores da perda. Não se apagam os danos físicos e os traumas da violência armada, do tiroteio. Não se tem como pagar uma reparação total para as trajetórias destruídas pelo uso excessivo da força e a sua ingovernabilidade transformada em padrão operacional.
Muito serviço antes de armar a GM.
Para que o GM não seja mais um agente da lei no Rio, com cabeça quente e dedo nervoso, que atira muito e atira mal, mais uma isca de tiroteios, mais um promotor de balas perdidas, mais um imã de ocorrências violentas, mais um chamariz de carteiradas, será inadiável reestruturar toda guarda e não somente uma parte ou fração destacada de integrantes. E isso demora 4 anos, se começar hoje. E, claro, os efeitos só serão efetivos e sentidos para toda a cidade após 36 meses, em razão da necessidade fluxo contínuo de preparo para o pronto-emprego do GM armado com segurança ocupacional e superioridade de método. O custo para capacitação em arma de fogo dos 7.312 GMs, apenas para o uso da pistola em cenário urbano, com tiro policial estático e dinâmico, seguindo o padrão internacional com o mínimo de 80 horas ou 3 meses de treino inicial e 10 horas de recapacitação anual, custará, por baixo, cerca de 15% do último orçamento da ordem pública. A este gasto se agrega o custeio do aumento de efetivo para um pouco mais de 12 mil GMs ao longo de 48 meses.
Para começar um projeto sério e consistente que permita a sociedade decidir se deve ou não “armar a GM-Rio” é preciso ter um pouco mais de trabalho. Mostra-se necessário dar conta de alguns pontos essenciais:
1.Reestruturar o desenho organizacional da GM (C3IC).
2.Redefinir e compatibilizar as atividades de policiamento ordinárias e especiais e suas coberturas ostensivas.
3.Especializar e ampliar a logística de apoio operacional (atividade-meio).
4.Criar uma estrutura de pronta-resposta na emergência (chegar em menos de 10 minutos nas ocorrências).
5. Provisionar o aumento gradual de efetivo.
6. Combinar uma gramática de meios (armamentos letais e menos letais, EPIs, rádios, bodycam etc.).
7.Implantar a doutrina de uso comedido da força em conformidade com as normas nacionais e internacionais (com procedimentos operacionais públicos e publicados).
8.Criar um programa de capacitação continuada que contemple capacidade instalada de treinamento de tiro estático em stand e tiro dinâmico em cenários simulados, recertificação anual com o mínimo de 90% de acertos em tiros defensivos, treinamento contínuo, avaliação psicológica e relatório de conduta do uso da força.
9. Implantar um sistema de supervisão entre pares e controles interno e externo com monitoramento individual do uso da arma e do gasto de munição.
10. Desenvolver um sistema de prestação pública e regular de contas, com responsabilização e accountability individuais.
11. Desenvolver um sistema de produção de informação e gestão do conhecimento.
Como se vê, diante desta pequena lista feita só com itens essenciais, há muito trabalho sério pela frente. Se o papo político de “armar a GM” é mesmo para valer, é bom começar a “caçar serviço” já. E já está tarde!
* É professora do Departamento de Segurança Pública – Instituto de Estudos Comparados de Administração de Conflitos (Inea), da Universidade Federal Fluminense (UFF).
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