“Caçador de marajás” revela as intrigas da família Collor – 07/11/2025 – Gustavo Alonso

"Caçador de marajás" revela as intrigas da família Collor - 07/11/2025 - Gustavo Alonso

A série “O caçador de marajás”, documentário dirigido por Charly Braun em seis episódios, estreou no Globoplay em meados do mês passado. Contada de forma envolvente, com entrevista dos principais protagonistas (exceto Collor), a série é interessantíssima. Da ascensão regional da família Collor ao mando nacional, constrói-se um painel da época, tudo entremeado de muita fofoca e reviravoltas históricas e familiares.

O documentário mostra em riqueza de detalhes as brigas intestinas da família. Ficamos sabendo da juventude de “rebelde sem causa” do ex-presidente. Sua pouca aptidão para os negócios midiáticos familiares. Sua real paixão por uma filha da elite interiorana sem expressão sequer no estado de Alagoas. Sobre o suposto enamoramento do presidente pela cunhada Thereza Collor, um dos mais interessantes personagens da série, que podia ser ainda melhor explorada.

A construção de um mito “outsider” serviu para legitimar o jovem e bonito candidato a governador do estado e depois à Presidência, com grande conivência da mídia da época, um quarto poder da República. O passo a passo da ascensão, mas também da queda do presidente, especialmente quando o irmão Pedro Collor passou a fustigar seu mandato com acusações de corrupção, são mostrados em ricas imagens de arquivos que compõem um roteiro que não se desgasta. A série acaba com a deposição do presidente, dando um gostinho de “quero mais” ao nos lembrar das fatídicas mortes de Pedro Collor e PC Farias poucos anos após o fim da novela da vida real.

Após a queda de Collor, a sociedade brasileira quis esquecer aquela “família do barulho” das Alagoas. Lembro-me que quando pesquisei sobre o tema para meu doutorado em meados dos anos 2000, a literatura não passava de uns cinco livros no mercado editorial. Havia algumas poucas teses e dissertações sobre o tema, a maioria das quais reproduzia as versões hegemônicas sobre Collor e seu governo, especialmente aquela que diz que vivemos sob um governo que “confiscou” a poupança dos brasileiros.

Aos poucos o tema do impeachment tornou-se novamente atrativo. Desde que Dilma Rousseff foi apeada do poder, o interesse pelo tema parece ter voltado à baila. Em 2023 foi lançado o sensacional podcast “Collor X Collor” produzido pelo streaming da Rádio Novelo. Agora, “Caçador de marajás” transforma em vídeo a história familiar que abalou o país no início da redemocratização.

Apesar da grande qualidade do roteiro, a série televisiva poderia ter ido além em alguns aspectos. Marcou-se um golaço com a utilização da canção “Pense em mim” na abertura. Mas em nenhum momento se explica o porquê dessa escolha. Seria interessante recordar que a música sertaneja foi então acusada de ser “a trilha sonora da era Collor”.

“Pense em mim” foi lançada em 1990, em meio à empolgação inicial com o governo Collor, o que a justifica no roteiro. Mas o fim da série com a música “É tarde demais”, originalmente lançada em 1995, ficou solto. Uma pena não terem lembrado da canção “Tô feliz (Matei o Presidente)”, o primeiro sucesso radiofônico de Gabriel O Pensador.

Os pactos de Collor com supostas forças de “magia negra”, como era dito na época, mereciam ter sido mais aprofundados no documentário. O presidente se consultava intimamente com lideranças de religiosidades afro-brasileiras, uma das quais é entrevistada no documentário. Como nossa esquerda identitária veria esta questão hoje? O que a mulher Roseane Collor, aliás muito subaproveitada no documentário, tem a dizer? Fica o gosto de quero mais.

Um problema que perdura tanto em “Collor X Collor” como em “Caçador de marajás” é a repetição simplificada e comum de que o Plano Collor foi rejeitado pela sociedade logo no início de sua implantação, em 1990. Na verdade, o plano foi inicialmente bem recebido porque o principal inimigo a ser combatido naquele momento era a inflação galopante. Por essa razão, o Plano Collor chegou a ser elogiado por figuras inesperadas da esquerda e do centro político da época.

O remédio era de fato amargo, mas a urgência da crise fez com que muitos o aceitassem de imediato, inclusive o Congresso Nacional e o STF. A vilanização de Collor é uma construção posterior, consolidada a partir de 1991, quando ficou claro o fracasso do plano e, especialmente, durante o processo de impeachment em 1992. O único a fazer uma crítica a essa memória na série é o economista Antonio Kandir, que foi secretário de política econômica do governo. Kandir afirmou que o congelamento da liquidez era necessário para combater o “dragão da inflação”, como era conhecido nosso principal inimigo econômico na época. Mas seu relato sequer direciona uma reflexão mais densa do roteiro acerca desta questão. Uma pena.

Comecei a prestar atenção em política nas eleições de 1989. Acho que gosto de política em parte por causa daquilo que Dora Kramer chamou em “Collor X Collor” de “sociologia do babado”. Ambas obras sobre Collor, podcast e documentário, mesmo com suas deficiências, são uma aula para muito historiador e sociólogo. Há muitos acadêmicos que conhecem nobres teorias e modelos interpretativos, mas pouco conseguem relacioná-las à realidade comezinha da história do Brasil. As grandes narrativas são feitas de fatos pequenos, invejas, disputas, ódios, ressentimentos. “Caçador de marajás” é rico nesse aspecto.



Fonte ==> Folha SP

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