Como voltar a ser um casal e não apenas uma microempresa talvez seja um dos maiores desafios do casamento. Com o tempo, a paixão vira amor, a intensidade cede à calmaria (na melhor das hipóteses) e a rotina não favorece a libido. Integrar amor e desejo no casamento é um desafio relativamente novo. Até o século 19, casar era um contrato econômico e social, focado na sobrevivência financeira e em alianças familiares.
Talvez pessoas próximas da sua família, como seus avós ou até mesmo seus pais, tenham vivido casamentos regidos pela lógica de uma “microempresa” —um eco que ainda vibra nas paredes do presente.O amor romântico entrou na equação com a ascensão da psicanálise, que iluminou a vida emocional, e com a luta pelos direitos das mulheres, que trouxe a escolha ao casamento.
Passamos, então, a buscar algo mais idealizado e mais difícil: não apenas uma parceria funcional, mas uma união que nos alimente emocionalmente e nos mantenha desejados e desejantes. O grande nó é que a fantasia de um casamento feliz mudou, mas os labirintos da realidade continuaram os mesmos: rotinas desgastantes, acúmulo de tarefas e discussões sobre microgestão.
Jay Shetty, em sua palestra no SXSW 2024, revelou dados alarmantes sobre nossa vida conjugal: casais passam apenas oito horas por semana conversando, sendo que 20% desse tempo é gasto em brigas sobre temas banais, como toalha molhada na cama ou quem pega o delivery; 23% do tempo semanal é consumido por discussões sobre cardápio e tarefas domésticas. E 1 a cada 3 pessoas admite dar mais carinho ao animal de estimação do que ao parceiro.
A intimidade, que deveria ser espaço de conexão, vira passe livre para que o outro se transforme no superintendente do Procon da nossa vida recebendo todo tipo de reclamação: do chefe, do filho, da alta do dólar… John Gottman, renomado pesquisador de relacionamentos, criou o conceito de “conta bancária emocional”: para cada interação negativa são necessárias cinco positivas para manter o vínculo do casal minimamente equilibrado.
Elogiar, compartilhar algo interessante ou colocar uma música no jantar são pequenos gestos que ajudam a resgatar o espaço íntimo, mas que aparecem com muito menos frequência do que os dramas cotidianos. Pense na sua relação e faça seu próprio balanço… provavelmente você já entrou no “cheque especial afetivo”, esse lugar onde o espaço íntimo se torna um terreno sem libido.
A libido, sem espaço na relação, escapa para jantares com amigos, hobbies ou paixões platônicas. O tesão e a novidade ficam fora da vida conjugal. Isso pode ser saudável para a individualidade, mas é igualmente importante (re)construir essa sensação dentro do vínculo. E não se trata apenas de conexão sexual, mas de redescobrir a delícia de fazer algo novo com alguém conhecido.
Helen Fisher e Esther Perel, grandes estudiosas das relações, apontam a importância de criar novos rituais de conexão. As palavras-chave aqui são “novo” e “rituais”. Repetir antigos programas –aquele jantar ou viagem especial– pode ser confortável, mas dificilmente reacende o desejo. Segundo Fisher, o desejo está quimicamente ligado ao novo, pois são as experiências diferentes que estimulam dopamina, oxitocina e adrenalina, hormônios que resgatam a euforia da paixão e quebram a monotonia.
Viver novas experiências juntos desperta curiosidade, interesse e desejo pelo outro. Essa redescoberta ultrapassa as conversas longas da rotina e nos convida a sair do modo racional, algo essencial para nos conectarmos com nosso sentir —e com a possibilidade de voltar a sentir prazer.
Mas, em meio a uma rotina exaustiva, esperar que a vontade da novidade brote espontaneamente é ilusório. Por isso, rituais são essenciais. Pequenos gestos, como mudar a iluminação, trocar de roupa para algo confortável e sensual ou abrir um vinho juntos ajudam na transição dos papéis cotidianos —de mãe, pai, gestor —para amantes. É como dizer: “Chegou nossa hora. Vamos brincar de ter prazer a dois?”. Ritualizar o relacionamento traz intencionalidade e abre espaço para novas fantasias e atmosferas.
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E vale pensar na ritualização também no sexo. Criar o contexto e o clima é um dos pontos importantes para que ele volte a ser desejante e não apenas protocolar. No casamento, esperamos que o desejo surja simultaneamente —o que raramente acontece —ou seguimos a lógica do “desejo responsivo”: estou quieto, mas, se o outro estimular, quem sabe? A questão é que, muitas vezes, um dos parceiros acaba se tornando o procurador, enquanto o outro fica pressionado a corresponder. Para evitar essa dinâmica, ambos devem se responsabilizar pela proposta, com liberdade para dizer “não” sem gerar conflito.
Falar sobre sexo também é essencial. Compartilhar fantasias e desejos ajuda a reconectar-se. O que funcionava no início pode não funcionar agora, e isso não é crise, mas evolução. O problema surge quando evitamos o diálogo, limitando as novas experiências e a intimidade sexual. Resgatar o desejo não é apenas sobre sexo, mas sobre reconectar-se fisicamente, sobre criar e cuidar de forma intencional de um espaço onde vocês possam ser só um casal.
Permitam-se não ser pais, sócios ou gestores por breves momentos. E pratiquem. Assim como sabemos dos benefícios da atividade física regular, é preciso provar os efeitos da atividade lúdica e libidinal juntos. Que tal colocar isso na agenda com o mesmo compromisso com que pagam os boletos e checam a lição da criança? O casamento, nutrido como espaço de redescoberta e não apenas de estabilidade, pode ser uma jornada de prazer contínuo e até mais desejante do que nunca.
Fonte ==> Folha SP