Até outubro de 2020, quando a primeira onda da covid-19 havia arrefecido, ninguém tinha ouvido falar em Vannick de Souza Belchior. Nem mesmo em sua cidade natal, Fortaleza.
Naquele mês, ao ser apresentada a um amigo de seu pai, o violonista Tarcísio Sardinha, em um bar da capital cearense, a então formanda em direito, meio envergonhada, topou dar uma canja.
Só um ano depois, os dois vieram a se encontrar para um show que deveria reunir os familiares e amigos, mas atraiu cerca de 400 pessoas, graças ao interesse despertado pela notícia de que, aos 24 anos, a filha caçula de Belchior (1946–2017) estava se lançando como cantora.
Vannick gostou da experiência e tomou como rumo o que seu pai, orgulhoso, dizia: “Essa menina vai ser cantora”. Veio uma série de apresentações batizada de O que aprendi nos discos, inspirada em Como nossos pais, um dos grandes sucessos de Belchior.
Quatro anos depois, com o direito deixado de lado, ela se lança nacionalmente a partir deste mês, em São Paulo, com releituras ousadas de canções como Divina comédia humana, Comentários a respeito de John, Medo de avião, Paralelas e, claro, Como nossos pais.
Filha de Belchior com a psicóloga Vilédia Bezerra de Souza, Vannick, porém, quer mais. Tem planos para resgatar músicas inéditas do pai censuradas na ditadura — sete, ao todo — e gravar composições próprias. Ela não é e nem será uma curiosidade passageira.
“Já é uma responsabilidade enorme me lançar como cantora, e ainda mais como compositora, na condição de filha de Belchior”, conta em conversa com o NeoFeed. “Mas essa é a ideia: seguir como ele e descobrir novos compositores que pretendo lançar, como um dia fizeram com meu pai.”
Quando seus pais se separaram, em 2000, Vannick tinha 3 anos. Ela, então, passou a ver o artista nas visitas mensais que ele fazia a Fortaleza — muitas vezes apenas no camarim de algum show. Até 2007, quando Belchior decidiu se isolar.
Pelos dez anos seguintes, afastado dos amigos e da família, quebrado financeiramente, o compositor viveu em diversos lugares, inclusive sendo hospedado por fãs.
“Eu era muito pequena quando passei por esta ausência. Agora, estou passando por essa presença. Seja no carinho dos fãs, das portas se abrindo por eu ser filha desse grande artista da música popular brasileira”, afirma Vannick. “É interessante e satisfatório não só enquanto artista, mas também no âmbito dos processos internos de filha.”
Veja a seguir os principais trechos da entrevista de Vannick para o NeoFeed.
Você sabe por que seu pai decidiu se isolar?
Convivi com ele até os meus dez anos, quando começou a reclusão. Quando ele sumiu, foi um choque para nós. Ele parou de dar notícias. Infelizmente, nunca conversamos sobre isso. Talvez por isso eu tenha me afastado da música e ido para o direito. Queria fazer concurso, auditoria fiscal, ajudar pessoas em situação de escravidão.
Na época, como você reagiu ao afastamento dele?
Mesmo depois da separação, meus pais continuaram a ser amigos. Minha mãe me levava aos shows e ele também fazia questão de que eu fosse — ele sabia que eu gostava de cantar e apostava que eu seguiria seus passos. Quando ele decidiu se isolar, sabíamos que ele estava no Uruguai e pela América Latina. Mas o contato diminuiu, até parar. Eu era criança, estranhei a ausência. Com a ajuda da minha mãe, tentei compreender o que acontecia.
Como Vilédia enfrentou todo esse processo?
Meus pais tiveram um linda história, de conexão, respeito e amizade. Ela sempre o enalteceu para mim. Queria me dar o que havia de melhor nele. Minha mãe dizia que ele estava viajando e voltaria em breve. Que era só uma fase. No começo, os dois ainda se falavam. Depois virou reclusão total. Como filha, aceitei sem tentar entender. Mas eu queria reencontrá-lo. Foi bem chocante quando ele faleceu… Eu tinha 20 anos. Não havia o que fazer além de sentir saudade.
“Hoje, não tento mais entender a atitude de meu pai. Como filha, só me cabe respeitar a decisão dele e honrar o legado que ele deixou”
E hoje, como você lida com o afastamento dele?
Por muito tempo fiquei enfadada com as perguntas sobre isso. Hoje, não tento mais entender a atitude de meu pai. Como filha, só me cabe respeitar a decisão dele e honrar o legado que ele deixou por meio de suas composições e discos.
Você diz que, em um primeiro momento, a ausência de seu pai a afastou da música. A música agora o torna mais presente?
Agora estou passando por essa presença. Seja no carinho dos fãs, seja nas portas se abrindo por eu ser filha desse grande artista da música popular brasileira. É interessante e satisfatório não só enquanto artista, mas também no âmbito dos processos internos de filha.
Como as pessoas reagem aos seus shows?
Elas chegam emocionadas, dizem que sentem a presença dele quando eu canto. Dão abraços como se fosse nele. Fiz amizade com músicos que tocaram com ele. Vão por curiosidade, mas depois se encantam com o meu trabalho, creio. Quando eu era pequena, sabia que ele era alguém diferente, mas não tinha a dimensão de sua importância.
Como era sua relação com a música até Tarcísio Sardinha chamá-la para dar uma canja?
Quando era pequena, fazia “shows” em casa, juntava pessoas da nossa família e amigos para me ver, assistia aos shows do meu pai. Sabia que ele era alguém diferente, mas não tinha a dimensão de sua importância. Mas fui crescendo e cantar passou a parecer um sonho infantil. Queria fazer concurso, auditoria fiscal, ajudar pessoas em situação de escravidão. O convite de Sardinha foi decisivo para que eu trocasse o direito pelo palco.
Quando Sardinha apareceu?
Em outubro de 2020, no meu último semestre da faculdade, fui a um bar e ele se apresentava lá. Não sabia quem ele era. Depois soube que era multi-instrumentista renomado.
Alguém avisou a ele que você estava presente?
Minha amiga avisou. Ele disse: “A filha de Belchior está aqui?” Traga ela!”. Pediu para ouvir minha voz. Expliquei que não era cantora, mas ele insistiu e cantei uma música do meu pai. Ele disse que eu era a pessoa com quem mataria a saudade de tocar Belchior.
Até que convenceu você…
Disse que faltavam três meses para eu terminar a faculdade e pedi para ele esperar, e eu voltaria a cantar. Ele topou e já me chamou para uma apresentação dias depois em homenagem a meu pai, pelo seu aniversário, em 26 de outubro. Fui e cantei três músicas.
Também era muito admirado por meu pai. Gravaram juntos Garoto de aluguel. Zé mergulhava em filosofia, misticismo. Esses três gênios se encontravam nesse grau de profundidade.
Por que você escolheu um trecho da música Como nossos pais para batizar o show?
Como nossos pais é quase um hino do país. Foi um marco entre Elis Regina e meu pai. A interpretação de Elis foi única, e isso deu visibilidade a ele. Meu pai dizia que Elis era “em definitivo” a maior cantora brasileira. Eu cantaria essa música para ele, se pudesse. Quando eu era criança, ele insistia que eu seria cantora. E, hoje, vivo de cantar como o meu pai.
Fonte ==> NEOFEED