O “novo” do ano que se aproxima costuma soar, para muitos de nós, menos como convite e mais como imposição: como se a virada do ciclo fosse um empurrão para virarmos a página dos traumas, das dores e das inseguranças para, enfim, recomeçar no amor com uma folha em branco, cheios de esperança, coragem e leveza. Mas é justamente esse empurrão que, mais do que motivar, nos lança num buraco conhecido de inadequação e insuficiência quando nos damos conta da bagagem emocional que segue conosco. Por isso, meu convite para este novo ciclo é outro: não espere ou se cobre “superar” todas as decepções amorosas para então se autorizar a amar de novo.
A maioria de nós carrega uma sensação permanente de inadequação. Reconhecê-la em si e no outro é uma forma de resistir a outra das imposições mais cruéis do nosso tempo: a ideia de que só relações leves e pessoas “bem-resolvidas” emocionalmente são capazes de amar bem. Você não precisa ser consertado para amar ou ser amado. Talvez precise apenas mudar a forma como se enxerga e como se relaciona com o eco das decepções passadas.
No amor muitas vezes nossa experiência depõe contra nós: com medo de que pisem nos mesmos calos que ainda doem e que abusem de vulnerabilidades nossas que já foram expostas como provas de amor, passamos a antever perigos que nem sempre existem, buscando no parceiro atual sinais dos amores que nos feriram. Freud chamou de neurose de guerra o efeito psíquico de um excesso impossível de simbolizar. O soldado retorna do front, mas algo dele permanece no campo de batalha.
Nas relações amorosas, vivemos algo muito semelhante. Amores passados podem funcionar como verdadeiras trincheiras psíquicas. A relação acaba, mas o corpo segue em guerra. Entramos nos vínculos atentos demais, desconfiados demais, reagindo a perigos que já não existem. Qualquer silêncio vira ameaça, qualquer conflito aciona alarmes antigos.
Não respondemos ao parceiro atual, mas ao eco de uma cena passada que nunca foi elaborada. A questão é que, quando o trauma governa o laço, o presente fica colonizado pelo passado. O outro deixa de ser outro e passa a ocupar o lugar de risco. A guerra acabou, mas seguimos dormindo com a arma ao lado da cama. Assim não há ano novo ou esperança que nos faça esperar um amor bom.
“Com a idade e tantos traumas de insucessos no amor, tenho mais pressa e mais insegurança”, escreveu recentemente uma leitora. Entendo a urgência e a insegurança. Mas parte da coragem para amar de novo talvez esteja em não tentar apaziguar a insegurança criando certezas absolutas sobre o que o outro sente ou como deveria se comportar. A pressa costuma nos empurrar para o desejo de entender rápido demais ou para a expectativa de uma conexão intensa e imediata que nos autorize a arriscar.
Para voltar a ter esperança no amor, talvez seja preciso desconfiar menos dos outros e mais das próprias certezas. Você não sabe o que o silêncio de dois dias significa. Não existe um comportamento padrão para pessoas recém-separadas, para mulheres, para homens. Generalizações oferecem uma falsa sensação de controle, mas empobrecem e inviabilizam encontros possíveis entre pessoas possíveis cheias de traumas, neuroses e incoerências.
Neste novo ano, em vez de tentar eliminar suas neuroses de guerra amorosas, ouse compartilhá-las com o novo soldado que se apresenta em sua vida. Ouse dividir calos, falhas e marcas e pergunte sobre as dele também. Ouse aprofundar nas conversas e também ouse ser inadequado sem que sua inadequação seja um peso.
Acredite que os vínculos se formam menos pelo encaixe perfeito às expectativas do outro ou pelo reconhecimento absoluto de que a pessoa é exatamente o que você esperava e mais pelo maravilhamento de descobertas curiosas, encantadoras que surgem quando você se permite ser inadequada e pedir pro date parar um pouquinho na avenida Paulista por que você está apertada e precisa fazer xixi atrás de uma banca ou finalmente demonstra um furo na sua imagem sofisticada, organizada, bem-resolvida e, num ato falho, oferece uma toalha furada para que seu novo amor se enxugue. É por esses furos que a humanidade transborda.
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Quando a angústia vier, tente não atravessá-la sozinho. Dê ao outro —e a vocês dois— o benefício da dúvida e do tempo. Ouse perguntar, nomear medos, falar sobre silêncios e desencontros sem transformá-los imediatamente em ameaça. Ouse ficar um pouco mais no domingo, escrever mais uma linha, mandar um áudio menos contido. O amor não se constrói na pressa nem na certeza, mas na coragem de permanecer enquanto se descobre. Talvez seja assim que ele deixe de ser um campo de sobrevivência e volte a ser, com todos os riscos que lhe são próprios, um espaço possível de encontro.
E se você também tem um dilema ou uma dúvida sobre suas relações afetivas, me escreva no colunaamorcronico@amorespossiveis.love. Toda quarta-feira respondo a uma pergunta aqui.
Fonte ==> Folha SP

