Dia dos Pais: como se livrar da carência de um pai ausente – 06/08/2025 – Amor Crônico

Dia dos Pais: como se livrar da carência de um pai ausente - 06/08/2025 - Amor Crônico

O Dia dos Pais se aproxima e, com ele, ecoa a dor da pergunta desta leitora que também é angústia e sensação de inadequação para muitos brasileiros. Segundo a Arpen (associação dos cartórios), 7% das crianças registradas no país em 2023 não têm o nome do pai na certidão. Desde 2016, já são mais de 1,2 milhão de filhos sem pai formalmente reconhecido. A esses dados somam-se os órfãos da presença: crianças com pai registrado, mas sem escuta, cuidado ou afeto. O silêncio da cadeira vazia nos aniversários, da ligação que não vem. E o que deveria ser presença estruturante, nos momentos de formação, muitas vezes se transforma em ausência desorganizadora.

Há também os que viveram com a presença física, mas sob o abandono emocional: a negligência cotidiana, o olhar que não repara, o afeto que não se oferece, o desinteresse em saber quem se é. É o pai que está, mas não vê; que provê, mas não acolhe.

A fantasia infantil —tão comum e tão humana— espera que o pai seja o super-herói que nos resgata do medo do mundo, que nos diz “vai” quando não temos coragem, que segura o leme quando o mar da vida balança. Mas quando esse herói falta, não raro a criança transforma a decepção em culpa: será que fui eu o problema? Será que sou eu a vilã dessa história? Ou pior: será que sou digno de ser amado? Intuímos que não… há algo de errado… e, num looping de desamparo, inadequação e ressentimento, quando a referência que deveria nos orientar no mundo falha, ficamos à deriva e passamos a desconfiar do amor, do outro, e principalmente de nós mesmos.

Muitas vezes, ao tentar curar essa ferida, acabamos fixados na repetição: “meu pai foi embora, logo me envolvo com quem também vai”. Como se esses parceiros fossem tentativas inconscientes de refazer, e desta vez reparar, o amor que não houve. Freud chama isso de compulsão à repetição: reencenamos o trauma como quem tenta dominá-lo. Buscamos nas velhas feridas um conforto perverso, pois já sabemos o que esperar: rejeição, ausência, não lugar.

A “carência desmedida” relatada pela leitora é comum entre filhos de pais ausentes. Mas elaborá-la exige ir além da dor pelo pai que não ficou. É preciso também olhar para a relação com a mãe que ficou e os vínculos que se formaram ali.

Na psicanálise, o pai (ou quem exerce essa função simbólica) é aquele que rompe a fusão com a mãe. É ele quem introduz o terceiro, quem mostra que não somos tudo para ela e que seu desejo também aponta para fora de nós. A função paterna ensina que o desejo será dividido, que haverá falta, que não teremos tudo.

Quando o pai real está ausente ou é emocionalmente inconsistente, esse corte simbólico pode não ocorrer —e a criança permanece enlaçada a uma relação de fusão com a mãe. Às vezes, esse vínculo se sustenta na dor partilhada, na sobrevivência a dois, numa proximidade excessiva. E é desse ideal de completude que muitas vezes não conseguimos nos desfazer —e que seguimos tentando reviver nos vínculos amorosos da vida adulta.

Pode parecer contraditório: racionalmente, talvez nunca tenha havido completude. Mas é justamente a ausência do pai que sustenta a ilusão da fusão. Sem a mediação de um terceiro, o sujeito não aprende a estar com o outro sem se perder de si. Isso molda dois movimentos: seguimos filhos querendo tudo da mãe e amantes querendo tudo do outro. E assim esperamos do amor o impossível: sermos totalmente preenchidos, incondicionalmente amados, nunca frustrados, jamais deixados.

Ao mesmo tempo, seguimos tentando agradar. Como crianças que ainda buscam ser amadas, moldamo-nos ao desejo do outro: “O que ela quer de mim para continuar me amando?” Tornamo-nos bons amigos, filhas, amantes sempre prontos, sempre atentos, mas sem jamais nos implicarmos na pergunta mais radical: e eu, o que desejo? Desejar por si não nos foi ensinado, tampouco vivido de forma positiva.

Ferenczi, que pensou a dor infantil com tanta delicadeza, nos lembra que a criança renuncia a si mesma para sobreviver ao vínculo. Torna-se cúmplice da própria dor para preservar o amor do outro. O abandono paterno, aqui, não é apenas ausência de presença concreta, mas também ausência de um contorno afetivo que valida o que se sente. Passamos, então, a desconfiar do tamanho da nossa própria necessidade de amor.

Sem a função simbólica desse pai que organiza e nomeia, que mostra que não ser tudo para o outro não equivale a ser rejeitado, ficamos sem autorização para desejar. A ausência de um pai que ama de fato (não idealmente) faz com que a criança internalize a ideia de que seu desejo de afeto é excessivo, inadequado ou incômodo. Seguimos, então, tentando caber no que coube: nos dizendo carentes demais, querendo menos do que precisamos, nos moldando ao tamanho do afeto possível e não ao do nosso desejo. Mas quem foi que disse o quanto é demais? E como elaboramos essa inadequação sem nos mutilar de novo?

Entendo que, num mundo que nos pede para seguir em frente, preencher vazios e ser sempre suficiente, ousar nomear-se como um ser faltante sem entender-se falho por isso é um ato político e um convite a uma mudança de posição subjetiva.

Para isso, é preciso reconhecer a falha ambiental, validar a dor real, o trauma, e poder nomear a falta desse pai e todas as faltas que se sucederam em sua vida por causa dessa ausência. Sim, alguém importante te faltou e essa dor é estruturante. Este deve ser um espaço nomeado, chorado e ritualizado —não para que ganhe um mapa para que alguém o preencha e sim para que legitime parte da sua história sem torná-la uma repetição de um enredo trágico.

Elaborar o luto do pai idealizado é, em alguma medida, também poder abrir mão da fantasia de completude absoluta no amor romântico. Isso não significa desamparo. Significa aceitar que a falta é parte da experiência de existir e pode, inclusive, ser via de intimidade, de humanidade partilhada, de encontro real.

Essa quebra requer também que você se convide a parar de buscar um amor que cure ou complete e se proponha a construir vínculos que acolham as faltas e os desejos um do outro (ainda que esses desejos não coincidam). Jessica Benjamin, no livro “The Bonds of Love”, aponta que “a submissão se estabelece quando o desejo de ser reconhecida se sobrepõe à possibilidade de existir”. Enquanto estamos dominados pelo eco da ferida dessa ausência paterna é pela submissão e alienação de nossos desejos que nos vinculamos. A saída se dá na coragem e na reconstrução da possibilidade de mutualidade: um amor onde o reconhecimento não esteja condicionado à submissão. Desnaturalizar amores que te calam, gestos e atos seus que te desautorizam para poupar o outro e se permitir uma investigação sobre seus próprios quereres é um caminho bonito para que consigamos nos posicionar de outra forma no amor.

Por fim, te convido a criar novas cenas de reconhecimento dentro e fora do amor romântico que sustentem a escuta verdadeira da sua história. Relações onde seja possível dizer o que se precisa sem medo de abandono. Onde a ambiguidade seja sustentada, a espera não seja atropelada, e o desejo possa existir, ainda que o outro não o satisfaça plenamente. Ninguém cura os próprios traumas sozinho, e poder buscar novos elos de sustentação é uma forma linda de se reparentalizar e de repactuar com suas próprias faltas. Que neste Dia dos Pais, se puder, você se dê de presente uma mudança de posição subjetiva.

E se você também tem um dilema ou uma dúvida sobre suas relações afetivas, me escreva no colunaamorcronico@amorespossiveis.love. Toda quarta-feira respondo a uma pergunta aqui.



Fonte ==> Folha SP

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