É possível anistiar quem ainda não foi condenado? – 25/02/2025 – Opinião

É possível anistiar quem ainda não foi condenado? - 25/02/2025 - Opinião

A pergunta do título deste artigo tem sido respondida de diferentes maneiras nos últimos tempos, a propósito das intenções de anistiar tanto as pessoas já condenadas por atos do chamado 8 de Janeiro quanto aqueles que ainda só foram denunciados, como seria o caso do ex-presidente Jair Bolsonaro.

A resposta à pergunta é bastante simples, se a anistia em questão for a anistia penal: não é possível anistiar penalmente quem não foi condenado. Ocorre que existe um outro tipo de anistia, e é exatamente desse outro instrumento jurídico que se está tratando aqui: a anistia política. Quando os defensores de projetos de lei para anistiar aqueles que participaram de atentados contra a democracia demandam uma anistia a todos os envolvidos, o que se pretende é uma lei de anistia política e não uma anistia penal. São instrumentos jurídicos diferentes.

.

Nesse ponto, o Supremo Tribunal Federal se encontra hoje numa encruzilhada, que talvez determine o sucesso ou não da empreitada dos defensores da anistia aos golpistas. Isso porque, para além das ações penais que estão em curso ou já terminaram com condenações penais em maior ou menor tempo de reclusão, tivemos recentemente a denúncia de mais de três dezenas de pessoas, incluindo Bolsonaro.

Ao mesmo tempo, o STF enfrenta o julgamento de pelo menos três ações distintas que tocam no tema da anistia política: os embargos na ADPF 153 (apresentada pela OAB), a ADPF 320 (apresentada pelo PSOL) e a ação relatada pelo ministro Flávio Dino acerca da possibilidade de julgamento penal dos responsáveis pelo desaparecimento de perseguidos políticos pela ditadura. Nesse último caso, foi decidido pela repercussão geral à decisão de prosseguimento da ação, afastando os argumentos da Lei da Anistia (Lei 6.683/79) —prescrição penal e irretroatividade da lei penal, entre outros.

As duas situações estão intrinsecamente vinculadas, e essa é a encruzilhada que o STF precisará enfrentar: em ambos os casos o debate é o mesmo; qual seja, que tipo de anistia política é permitida pela Constituição Federal de 1988?

A pergunta é importante porque, ao contrário da anistia penal, que só possui uma forma de anistia, no caso das anistias políticas existem dois tipos: as anistias de memória e as autoanistias, que são as anistias de esquecimento. Isso faz toda a diferença no resultado. Enquanto não é possível anistiar penalmente quem ainda não foi condenado, é possível sim anistiar politicamente quem ainda não foi condenado. E o resultado prático é que se a pessoa for anistiada politicamente (por uma lei, nesse caso), ela não poderá sequer ser processada penalmente, quanto mais condenada. Então a anistia política, nesta hipótese, precede a condenação. Essa é a lei de autoanistia, ou anistia política de esquecimento.

O argumento mais frequente nos países que debatem leis de autoanistia é a pacificação nacional e a reconciliação. E no Brasil não é diferente.

O outro tipo de anistia política é a anistia de memória. Nesse caso, não é possível anistiar antes da condenação porque as anistias de memória só apagam justamente as condenações, funcionando como as anistias penais regulares. Ao contrário das autoanistias, as leis de anistia política de memória lembram e ressaltam tudo o que aconteceu e afirmam que essa memória precisa ser mantida para que aqueles fatos nunca mais se repitam.

Temos, então, os dois tipos de anistia política como uma possibilidade jurídica. Resta saber se os dois tipos podem ser usados à luz da Constituição Federal de 1988. E é aí que entra a encruzilhada que o STF se encontra. Se o Supremo entender que a Carta permite leis de autoanistia, qualquer tentativa do Congresso em aprovar uma anistia política desse tipo será em vão —e de uma vez por todas ficará claro que no Brasil não é possível anistiar politicamente quem ainda não foi condenado.

Mas se o STF afirmar que a Constituição permite leis de autoanistia, então essas intenções de anistiar o ex-presidente terão chance de prosperar. Me parece que o STF já respondeu a essa pergunta, e já resolveu essa questão, mas precisa deixar ainda mais clara a sua posição. Pode, e deve, fazer isso por intermédio das ações que agora tramitam relativamente aos crimes cometidos durante a ditadura militar.

O STF precisa afirmar claramente que a Constituição não permite leis de autoanistia, mas apenas as leis de anistia política de memória, e por isso é que a lei 6.683/79 foi recepcionada pela Constituição e está em vigor: porque ela é uma lei de memória. Assim sendo, quem ainda não foi condenado não está anistiado por ela, e pode ser processado, como nos casos que estão tramitando no próprio STF e em todas as instâncias do Poder Judiciário. Em outras palavras, todo e qualquer torturador que está vivo e nunca foi condenado pode ser processado hoje porque ele não foi condenado, e, portanto, não está “coberto” pela Lei de Anistia.

Também não pode invocar a prescrição penal ou o princípio constitucional da irretroatividade da lei penal, já que os crimes da ditadura foram classificados como crimes contra a humanidade, conforme a Corte Interamericana de Direitos Humanos, à qual o Brasil se submete por tratados internacionais.

Em síntese, respondendo objetivamente à pergunta que intitula esse artigo, a resposta é: dentro do ordenamento constitucional brasileiro não é possível anistiar politicamente ninguém que ainda não tenha sido condenado, porque a única anistia política constitucional no Brasil é a anistia política de memória, que é a da Lei de Anistia de 1979. E é por essa mesma razão que todo e qualquer torturador pode e deve ser responsabilizado criminalmente hoje em dia.

TENDÊNCIAS / DEBATES

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.



Fonte ==> Folha SP

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *