Não existe forma certa de elaborar o fim de uma relação. Mas nenhuma relação —com tudo o que ela provocou, ressoou e marcou— se elabora de fato, e não apenas termina, sem que você se permita atravessar o que esse fim ainda mobiliza no agora.
Faço questão de iniciar este texto dizendo que a pergunta vem de uma leitora porque aqui o recorte de gênero faz toda a diferença na forma como a sociedade valida (ou não) os incômodos de quem os enuncia.
Historicamente, fomos educadas para sermos “boas moças”: pacientes, servindo com doçura, compreendendo as necessidades alheias e abrindo mão das próprias. Mesmo gerações como a minha, formadas nos anos 80 e 90, cresceram ouvindo que deveríamos investir em nossas carreiras, conquistar independência financeira, bancar nossas escolhas e saber o que queremos. Mas, ao mesmo tempo e quase no mesmo tom, fomos ensinadas que uma mulher é mais querida, mais aceita e mais amada se souber dizer tudo com jeitinho, se for doce mesmo diante da dor, compreensiva mesmo diante do absurdo.
Ou seja, nos deram a autonomia, mas com um pedido velado: que ela não fosse incômoda. Que o desejo de falar, de pedir, de ir não pesasse demais a ninguém. Afinal, leveza sempre foi exigência (mas só da nossa parte). Como se ser amável fosse sempre mais importante do que ser verdadeira.
No imaginário coletivo, a mulher que se coloca é a barraqueira, a louca, a histérica, a “pobre coitada” como descreve Elena Ferrante em “Dias de Abandono”: “Quando você não sabe segurar um homem perde tudo… A mulher perdeu tudo, até o nome, se tornou para todos ‘a pobre coitada’. A pobre coitada chorava, a pobre coitada gritava, a pobre coitada sofria, dilacerada pela ausência do homem vermelho suado (…) A coisa que temia desde pequena —crescer e ficar como a pobre coitada”.
O medo que se transforma na maldição vivida por Olga, protagonista do romance, é, de certa forma, o medo de muitas de nós: perder o amor e o controle emocional e, por perder o controle emocional, jamais recuperar esse amor. Como se na contenção existisse alguma chance de retomá-lo.
Esta é a mentira perversa embalada como se fosse um conselho sensato: que, ao silenciarmos, estaríamos nos poupando e poupando o fio de esperança de um retorno possível (que talvez só exista na nossa cabeça e nos leve de volta a uma relação que nem seja exatamente a de um amor que nutre). Será? Ou só estamos poupando o outro de lidar com o incômodo que causou, sob o falso argumento de que maturidade emocional é digerir tudo sozinha, sublimar com elegância, sem transbordar?
Estamos mesmo ensinando essas mulheres a serem maduras e inteligentes emocionalmente ou, sob o pretexto de um aparente controle e superioridade emocional, estamos calando sofrimentos que precisam de catarse, de palavra, de choro, de fala, de desorganização, antes que adentrem no mundo dos tais amores superados?
Discordo com o conselho que desincentiva você a expor seus incômodos para aquele que os causou sob a lógica de que isso seria se rebaixar. Porque isso perpetua o silêncio conivente que protege a inconsequência dos “bons moços atrapalhados”.
O final relatado pela leitora é comum: homens bem grandinhos que se comportam como eternos adolescentes apavorados diante da nomeação e da formalização do compromisso. Juntos há meses, já vivem como um casal de namorados —conhecem os filhos um do outro, viajam juntos, fazem planos, trocam confidências… mas nomear “namoro” ainda é um tabu. Como bons neuróticos obsessivos, esses homens temem prometer o que não podem garantir, acreditando que, se não nomeiam, não decepcionam ao sair.
Aqui o perverso é que a saída obsessiva se dá com ares de crueldade, já que é embalada com bom mocismo: com palavras delicadas, citações de poetas e um texto cuidadoso, o sujeito te deixa com elogios e votos de felicidade. Fala em te poupar, em te respeitar, em estar confuso, adoecido, cansado. Termina dizendo que te deseja tudo de bom, que espera que você fique bem, e no puro modo “não é você, sou eu” coloca o desinvestimento repentino na conta de questões mal resolvidas das relações passadas, problemas pessoais de saúde mental —crises de ansiedade, quadros depressivos, burnout no trabalho— e, como um cara bacana, quer te poupar de toda essa confusão. Assim, coloca a desculpa do fim em um item digno de pena, compaixão e piedade que mantém a aura do moço bonzinho que espera que vocês possam ser amigos. E a maioria deles efetivamente vai embora com a sensação de que foi um cara legal porque não descumpriu combinados que não foram desfeitos —quando o fato é que mesmo sem as formalizações esses homens já estavam implicados em relações que não eram menos relações apenas por que não tinham rótulos formais de namoro.
Mais do que te poupar, ele quer se poupar. Do papel de vilão. Da culpa de machucar. Da consciência de que o vínculo era real, mesmo sem rótulo. E que a dor não é menor porque a relação ainda não se chama “namoro” real oficialmente (afinal de contas vocês têm 45 anos, não 15…), mas, para efeitos da lógica obsessiva, ele vai fingir que faz diferença. E a cada vez que você silencia, ajuda a manter intacta essa narrativa. Assim, quanto mais você seguir o conselho dos outros de não se expor, mais vai estar ajudando esse cara a seguir achando que dá para sair impune do fim de uma relação.
“Impune” é uma palavra delicada. Porque também não acredito que valha a pena falar o que te incomoda e o que te atravessa como forma de tomar pra si a toga da paladina da responsabilidade afetiva. De nada vale tirar o cara do papel do eterno bom moço se você se colocar automaticamente no papel da pobre coitada.
É importante apontar que existem consequências em seus atos e que em capítulos dessa saga de vocês dois ele será, sim, o vilão da história? Sim. Isso te faz a eterna vítima iludida de homens narcisistas e manipuladores? Não. Você apostou nessa relação porque quis, se entregou porque estava valendo a pena e provavelmente aprendeu e aproveitou muito com ela.
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E exatamente porque esse amor te mobilizou acredito que valha compartilhar o incômodo —não para ferir o outro, exigir reparação, pedido de desculpas ou idealizar um arrependimento e uma possível volta (estas são motivações traiçoeiras a partir das quais te desaconselharia a agir, pelo simples fato de que você não controla o desejo e a reação do outro). Mas se o impulso de falar é movido pela elaboração e não pela vingança ou pela fantasia da redenção, autorize-se. Para dar corpo e espaço ao que doeu. Para nomear o que foi descuido, desamor, desrespeito. Para sair da representação da mulher que finge estar plena e bem resolvida quando encontra o ex por aí, dizendo que está tudo certo, que superou, que deseja amizade.
Revelar o truque do falso bom moço é importante para desmontar esse modelo. Algo como dizer: “Eu vou ficar bem. Mas quero que você saiba que não foi tudo bem. Que seu desejo de que eu esteja bem não faz de você um cara legal. Faz de você um sujeito que está tentando proteger o próprio narcisismo ao posar de sensível enquanto termina de forma covarde uma relação que já durava quase um ano”.
Fale por você. Não por ele. Talvez ele nunca entenda, nunca mude. Mas você não precisa ser nem a boazinha conivente, nem a bem resolvida que sente sem demonstrar. Permita-se sentir raiva, decepção, tristeza, vontade de falar. Permita-se transbordar. Não para que o outro volte, não para ensinar nada a ele. Mas para seguir adiante sem calar sua própria história.
Falar pode ser o gesto que te tira do papel da “coitada” e também da “justiceira”. Isso te coloca em outras posições, te coloca em movimento. E te convida, finalmente, a encerrar essa história, mas não a diminuir sua vontade de amar e agir rumo a amores possíveis.
Fonte ==> Folha SP