Enquanto o país fervia com o tarifaço de Donald Trump e com as sanções ao ministro do STF Alexandre de Moraes, a Folha franqueava seu espaço a outros tubarões menos chamativos. Com a republicação de um texto do site Mongabay, o jornal dava espaço a acusações que colocavam em dúvida aspectos sanitários e ambientais relacionados ao consumo da carne de tubarão.
O cação, como essa proteína é chamada para se tornar mais palatável, é popular no Brasil há décadas. A ponto de, segundo a reportagem, virar “comida em escolas e hospitais públicos do Brasil”. Havia, porém, um aposto: esse consumo traria, segundo a equipe do Mongabay, “riscos à saúde e ao meio ambiente”.
O site se descreve como uma agência de notícias sobre conservação e ciência ambiental sem fins lucrativos. O Mongabay publica o que bem entender, é claro, e tem sua própria linha editorial. O problema é quando a Folha se dispõe a reproduzir um conteúdo que borra as fronteiras entre jornalismo e ativismo.
A denúncia era que órgãos públicos compram carne de tubarão/cação, mas isso não é proibido no Brasil nem havia indícios de irregularidades específicas. Ela era agravada pelo fato de apostar no pânico sanitário, um dos grandes sucessos de audiência das redes sociais.
Se há problemas ambientais no consumo de cação e indícios do acúmulo de metais pesados na carne, obviamente eles devem ser investigados e apontados. Mas é preciso fazê-lo com base em dados, com espaço para o contraditório e com responsabilidade.
O texto repisava que o consumo dessa carne “está associado a problemas ambientais e de saúde pública”, que ela “é rica em toxinas de metais pesados” e que “é preocupante o fato de o número de tubarões ter despencado devido à sobrepesca”. Sem evidências, porém, não saía do lugar.
Abria-se um mínimo espaço para ponderação. “Os comercializadores de carne de tubarão argumentam que as preocupações com a sustentabilidade são exageradas porque a indústria depende, principalmente, de tubarões-azuis (Prionace glauca), que são mais férteis do que outras espécies. Conservacionistas contestam esse argumento e afirmam que a pesca de tubarões-azuis em grande escala é insustentável ao longo do tempo.” O texto não informa quem são os conservacionistas nem onde estão os dados. Mais do que isso, não ia atrás de entidades responsáveis pela venda e pelo consumo de cação no Brasil, que não são só os “comercializadores”.
A reportagem ouvia uma ONG que “tem pedido a proibição de todas as compras institucionais de carne de tubarão”. Mas só foram acrescentadas duas frases de uma nota da Abipesca (Associação Brasileira das Indústrias de Pescados) no dia seguinte à publicação.
“No âmbito sanitário, o cação comercializado no Brasil, independentemente se de origem nacional ou importada, não apresenta qualquer tipo de contaminação, ou seja, não representa risco à saúde do consumidor. Dados oficiais do governo no monitoramento de resíduos e contaminantes em pescado comprovam isso”, afirma a Abipesca.
A Abrapes (Associação Brasileira de Fomento ao Pescado) também diz não ter sido procurada e enviou nota de repúdio para a Folha, que publicou um pequeno trecho dela no Painel do Leitor. As duas entidades afirmam que “as informações publicadas na reportagem em tela misturam preocupações ambientais com dados incorretos sobre saúde pública, confundem as responsabilidades dos órgãos fiscalizadores e deturpam o entendimento da população brasileira”.
O material publicado na Folha também contrapunha a recomendação do FDA americano à do Brasil. “O Ministério da Saúde recomenda cação para crianças pequenas e bebês. O guia alimentar do ministério para crianças menores de 2 anos destaca a falta de espinhas, mas não faz menção a contaminantes.”
O que o ministério teria a dizer sobre isso? Também não sabemos, porque o órgão não é ouvido. A pasta foi procurada pela ombudsman no final da semana, e este texto será atualizado se houver manifestação.
Um dos leitores que se manifestaram nos comentários da reportagem, Luciano Guimarães fez sua própria checagem. “Como estranhei que a matéria da Mongabay tivesse como fonte a própria Mongabay, procurei matérias com outras fontes. (…) De acordo com Fernando Barbosa Junior, toxicologista da FCFRP-USP que pesquisa essa contaminação: ‘uma intoxicação só ocorre se a pessoa tiver dieta à base de cação contaminado, comendo o alimento de quatro a sete vezes por semana, em quantidade próxima a meio quilo por refeição ou se ingerir, numa única refeição, perto de 1kg do peixe contaminado’”. A declaração apareceu num texto do jornal O Globo, em 2014, após uma análise ter encontrado mercúrio em uma marca de cação.
Procurado pela ombudsman, o Ministério da Pesca afirma que “a pesca de tubarão-azul no Brasil é sustentável” e que discussões realizadas neste ano resultaram em melhorias de “ordenamento, monitoramento, controle e fiscalização”. Além disso, “a captura de quase todas as espécies de tubarões no país já se encontra proibida”, informa a pasta, que cita que a espécie vendida como cação não está ameaçada.
Numa realidade em que é cada vez mais difícil duvidar de emergências ambientais ou sanitárias, o rigor jornalístico ainda faz (ou faria) alguma diferença.
Fonte ==> Folha SP