Há discos que chegam como laudos revelando dores que a vida tentou esconder. “Emicida Racional VL 2 – Mesmas Cores & Mesmos Valores”, soa assim para mim —um prontuário de dor, tristeza e desorientação espiritual escrito em forma de rap.
Depois de “AmarElo”, de 2019, —trabalho que levou Emicida ao ponto máximo de visibilidade e, ao mesmo tempo, tirou ele da tomada do rap— esse álbum chega como quem admite: Emicida está à deriva.
“AmarElo” foi um avião em turbulência, guiado por um piloto confiante demais para admitir que os instrumentos falharam. Na tentativa de conversar com todo mundo, ele se afastou de si. O cara que dizia “não escolhi fazer rap não, na moral/ o rap me escolheu porque eu aguento ser real” foi puxado por outra lógica, menos conflito, mais conciliação que confronto. E aí chegou a pergunta incômoda: ele ainda aguenta ser real?
“Mesmas Cores & Mesmos Valores” nasce depois do impacto mais violento de todos: a morte de Dona Jacira Roque de Oliveira, mãe de Emicida, artista e escritora. Ela morreu em 28 de julho, aos 60 anos, depois de lutar contra o lúpus. Luto assim não é só ausência; é desmonte. Aí você começa a procurar amparo nos lugares que formaram sua fé: nos orixás do rap.
Por isso esse disco parece também um ritual. Em várias faixas, como orações, Emicida volta para as encruzilhadas que o constituíram, como se chamasse Exu, ou os Racionais MCs, pra reorganizar os caminhos. Em “Us Memo Preto Zica”, ele costura frases do grupo de rap como quem recita públicas olhando no espelho. Como um lembrete de quem ele foi. Uma obra não para o público, mas pra si.
“O Que Nóiz Faz com Essa Dor?”, “Finado Neguim Memo?” e “A Coisa Mais Esperançosa e Mais Dilacerante São as Mesma” te empurram para um abismo melancólico que faz imaginar exatamente “onde está sua mente agora”, frase que encerra essa última música. “Bom Dia Né Gente? (Ou Saudade em Modo Maior)” completa o golpe com um piano quase fúnebre, recortes de áudio de sua mãe e sons de angústia e choro, uma faixa que deixa em pedaços o artista que transforma sua dor mais dura em arte.
Mesmo na dor, esse é o trabalho em que ele soa mais próximo daquele garoto combativo das primeiras mixtapes. Tem raiva, tem cinismo, tem grito sem filtro comprimido nos versos.
É possível enxergar no disco um ensaio de luto e melancolia escrito por um pensador periférico do nosso tempo. O sujeito que tentou elaborar a dor transformando tudo em linhas, em “levanta e anda”, agora admite que tem coisa que não se resolve em frase motivacional. A tristeza é matéria-prima, e o seu rap volta a ser território de conflito interno, e não mais um selo de aprovação branca.
Talvez por isso “Mesmas Cores & Mesmos Valores” apresenta um homem esgarçado por dentro. É o Emicida que brinca com palavras, estica proparoxítonas pela beleza sonora, mas engole o choro entre um punchline e outro. Não mais o salvador da pátria, o do rap, nem o professor de uma geração: é um filho que enterrou a mãe, um rapper tentando se reconciliar com o adulto que já foi e com o garoto que rimava na porta do metrô.
No fim, não é sobre reverenciar os Racionais, é sobre encarar, e aceitar, quem o Emicida se tornou. As referências ao grupo estão ali como bússola, mas o mapa é emocional —um homem deprimido, tateando no escuro, tentando entender se ainda tem missão, se ainda aguenta ser real e se o rap, apesar de tudo, ainda é o lugar onde ele consegue existir inteiro, com as mesmas cores, mas com valores feridos, rearranjados e, talvez, finalmente assumidos.
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Fonte ==> Folha SP
