Entendo o medo de que a exaustão emocional, física e psíquica típica do fim do ano possa distorcer nossa percepção sobre o outro e sobre o futuro da relação. Quando estamos sem forças, qualquer pequeno movimento parece gigante; e, mal conseguindo dar conta do ano que termina, nos questionamos se estamos enxergando a relação com clareza ou se estamos esgotados demais para sermos justos.
Surge o temor de estarmos operando naquele “modo criança cansada”, que chora, faz birra, se angustia, se descontrola, mas que, após uma boa noite de sono, volta a se relacionar leve com o mundo. A dúvida é: estou sensível demais a ponto de me tornar imatura? Ou há uma pergunta madura se insinuando por baixo dessa sensibilidade extrema?
Será que reconhecer nosso limite e considerar a possibilidade de desistir não seria justamente maturidade? Uma recusa em seguir infantilizada, esperando que algo externo decida por você?
Mesmo em meio a crises que se repetem, muitos casais aguardam um incidente incitante que “autorize” o fim: “Se no próximo ano ele repetir esse comportamento…”; “se levantar a voz mais uma vez…”. Guiados pelo que chamamos de amor e que traz consigo um misto de apego, medo do desconhecido e a famosa compulsão à repetição, transformamos a relação numa prova de resistência e enaltecemos nossa resiliência, como se suportar fosse sinônimo de caráter e comprometimento. Até quando? E a que custo? A quais ideias estamos resistindo quando resistimos em terminar?
Sim, você está exausta. Mas talvez seja justamente esse cansaço que te torna menos tolerante a dores antigas que você normalizou quando estava mais forte. A psicanálise lembra que o esgotamento derruba defesas: aquilo que sustentamos o ano inteiro —explicações, pequenas racionalizações— perde força. Freud dizia que o Eu fadigado deixa vazar o recalcado; Lacan, que é na fissura do Eu que o desejo aparece. Talvez dezembro seja perigoso e revelador porque desamarra o que parecia seguro, mas já estava por um fio.
E aí começam as desculpas do calendário: “Natal“, “as crianças”, “o Ano-Novo“, “os boletos de janeiro”. Mas fevereiro também será complicado; março terá a cirurgia da mãe; depois virá a fase de desemprego da companheira; depois, a decisão de tentar a terceira terapeuta de casais; na sequência, a esperança de que na viagem de julho tudo melhore; depois, a culpa de partir próximo ao Dia dos Pais; depois… Sempre haverá um “depois” que torna impossível o agora.
E sempre haverá a dúvida. A que cai sobre você: “e se eu me arrepender?”; “e se for só cansaço?”; “e se for só uma fase?”. Uma dúvida que tenta ser adulta, mas nos infantiliza ao nos paralisar esperando uma certeza que não existe. Criamos um pensamento mágico para conter o desamparo —”vou saber quando chegar ao meu limite”. A verdade é que não há sinal claro, nem respostas completas. Nem suas, nem dele.
Mas quando nos desorganizamos em nossas próprias incertezas, projetamos a dúvida no outro e passamos a interrogá-lo: “Por que você não muda isso que é tão simples para mim?”; “por que repete o que me machuca?”.Terceirizamos a culpa e sustentamos a fantasia de que, se ele mudasse “aquela pequena coisa”, tudo se resolveria. Mas se essa coisa nunca mudou, talvez não seja pequena. Talvez não seja falta de vontade, mas de estrutura, prioridade, possibilidade. E então volta a pergunta que você evita: por que eu ainda insisto? Por que nós ainda insistimos?
Persistimos por amor, história, família, sonhos, estrutura emocional e financeira. E enquanto quisermos seguir tentando, seguiremos nos iludindo de que a separação virá no dia em que deixarmos de amar ou deixarmos de ter dúvidas. Mas relações adultas não oferecem a certeza infantil que desejamos. Não há “agora sim, este é o momento certo”. Há escolhas, riscos, consequências.
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Às vezes, decidir é o único modo de crescer. Decidir desistir —não só do casamento, mas da expectativa de que o outro fará uma mudança estrutural; desistir de esperar o incidente perfeito que autorize o fim. Chega um momento em que a honestidade exige ver o que vocês não conseguiram cumprir, sem vilões: algumas promessas simplesmente não cabem mais nas pessoas que vocês se tornaram.
Há sabedoria em desistir. Ao contrário das lutas em que quem desiste perde, no amor desistir pode ser início de ganhos: de si, da saúde emocional, do descanso, da dignidade. Que este fim de ano exausto te ajude a olhar com mais amor para o próprio cansaço. Talvez ele revele a dor crônica que você tentou esconder com força demais —e que agora pede, finalmente, uma decisão.
E se você também tem um dilema ou uma dúvida sobre suas relações afetivas, me escreva no colunaamorcronico@amorespossiveis.love. Toda quarta-feira respondo a uma pergunta aqui.
Fonte ==> Folha SP

