Faz muito tempo que não bebo. Poderia dizer com orgulho que sou uma pessoa em recuperação há anos. Mas ainda hoje, depois de tanto esforço e tantas batalhas vencidas contra o álcool, enfrento obstáculos que não têm a ver com a bebida em si, mas ainda têm o gosto amargo do passado.
Uma das coisas mais difíceis na minha recuperação são os resquícios do passado etílico. Eu já passei da fase da fissura, da abstinência física, da contagem dos dias. Hoje, minha maior luta é contra o estigma que carrego, especialmente o de ter sido uma pessoa que mentia muito quando bebia. E eu mentia mesmo. Para os outros, para mim mesma, para encobrir, para escapar, para TU-DO e todos.
O álcool me transformava. A mentira se tornou uma espécie de escudo para manter minha vida mais ou menos funcional por fora, mesmo quando por dentro tudo estava desmoronando. Só que hoje, mesmo estando sóbria, a sombra dessa antiga versão de mim mesma ainda está aqui. E o mais difícil é perceber que para algumas pessoas não importa o quanto eu mude: elas ainda suspeitam que eu esteja mentindo.
É frustrante. Doloroso. Às vezes, humilhante. A sensação constante de ter que provar que estou dizendo a verdade, que sou confiável, que não sou mais aquela pessoa, é um peso que levo. Às vezes, tenho a sensação de que minha palavra sempre precisa vir com um carimbo de cartório.
E mesmo compreendendo que isso faz parte do processo, que recuperar a confiança leva tempo, e que os outros também têm suas dores e cicatrizes deixadas por mim, ainda é difícil lidar com essa realidade.
Muita gente acha que parar de beber é a parte mais complicada do alcoolismo. E é, sim, muito difícil. Mas depois desse primeiro grande obstáculo, quando você está sóbria, quando já fez um monte de mudanças, ainda não é levada a sério. Ainda não é confiável o suficiente. Ainda existe aquele pé atrás nas pessoas.
A verdade é que o alcoolismo não acaba quando a gente para de beber. Ele continua nas lembranças, nos traumas, nas relações que precisam ser reconstruídas. Ele está presente quando você percebe que sua vida já não gira mais em torno da garrafa, mas gira em torno das consequências da ativa.
Hoje, sigo sóbria. Sigo tentando viver com honestidade, com dignidade, com humildade. E, principalmente, sigo tentando me perdoar por quem eu fui. Não é fácil. Às vezes, ainda sou julgada pelo que fiz e não pelo que sou hoje. Mas aprendi que parte da recuperação é justamente isso: aceitar que algumas coisas levam tempo. Que algumas feridas dos outros também precisam cicatrizar. Que algumas pessoas nunca consigam olhar para mim sem lembrar da época em que eu mentia.
E tudo bem. Não é justo, mas é real. A vida “normal” que eu tanto desejo talvez nunca seja como eu imagino. Mas sei que pode ser verdadeira, e, acima de tudo, livre. Livre do álcool, livre da mentira, e, um dia, espero, livre dessa culpa.
Se você também sente isso, se também tem que provar todos os dias que é alguém diferente, saiba que você não está sozinho. A recuperação é feita de muitas pequenas batalhas, e cada uma delas conta. Mesmo quando ninguém vê. Mesmo quando ninguém acredita. Você sabe quem você é hoje. E isso já é um enorme passo.
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Fonte ==> Folha SP