Estratégia de segurança dos EUA é guerra contra Europa – 16/12/2025 – Martin Wolf

Sombra de homem de perfil apontando com a mão direita estendida, em frente a fundo azul com doze estrelas amarelas dispostas em círculo, representando a bandeira da União Europeia.

“Pagaremos qualquer preço, suportaremos qualquer fardo, enfrentaremos qualquer dificuldade, apoiaremos qualquer amigo, enfrentaremos qualquer inimigo para assegurar a sobrevivência e o sucesso da liberdade.” Assim, em seu discurso de posse em 20 de janeiro de 1961, o presidente John F. Kennedy declarou os objetivos de seu governo.

Era o auge da Guerra Fria. Para os habitantes de uma Europa dividida, o discurso foi eletrizante. Em retrospecto, essa ambição grandiosa levou ao excesso da Guerra do Vietnã. Mas também indicava a ideia enobrecedora de uma superpotência com um propósito moral.

Apesar de todos os fracassos, as pessoas continuaram a acreditar nesse propósito: em contraste com nazistas e comunistas, os Estados Unidos acreditavam na liberdade e na democracia.

Para nenhum povo esse compromisso foi mais significativo do que para os europeus. Em última instância, ele levou ao colapso do império soviético, à libertação da Europa Central e Oriental e a uma nova era de unificação, paz e prosperidade. Como tantas vezes na história, as esperanças foram frustradas. Foram frustradas pela ascensão de forças xenófobas e antidemocráticas dentro da própria Europa, pelo ressurgimento de uma Rússia autoritária, revanchista e belicosa, e pela hostilidade fervente às ideias centrais da Europa contemporânea por parte do segundo governo de Donald Trump.

A nova “Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos da América” tem muitas características estranhas. Mas a mais estranha e, para os europeus, a mais perturbadora, é que eles passam a ser vistos como os únicos inimigos ideológicos dos EUA. No restante do documento, os interesses são tratados como meramente materiais, não ideológicos. As ameaças à democracia e à liberdade agora viriam apenas de opositores internos aos EUA e de seus aliados mais próximos.

Assim, afirma-se que os poderes do governo americano jamais devem ser “abusados… sob o pretexto de… ‘proteger nossa democracia’”. Logo abaixo (e não por acaso), o texto declara: “Vamos nos opor a restrições antidemocráticas, impostas por elites, às liberdades fundamentais na Europa, na anglosfera e no restante do mundo democrático, especialmente entre nossos aliados”.

Além disso, “a diplomacia americana deve continuar a defender a democracia genuína, a liberdade de expressão e celebrações sem desculpas do caráter e da história próprios das nações europeias. A América incentiva seus aliados políticos na Europa a promover esse renascimento de espírito, e a crescente influência de partidos europeus patrióticos é, de fato, motivo de grande otimismo”.

O significado é claro: o principal objetivo dos EUA na Europa é ajudar a colocar “patriotas” de direita no poder em todo o continente. Mais ainda, sustenta-se que as tentativas de resistir a esses partidos seriam, elas próprias, antidemocráticas. Vale lembrar, porém, que, ao contrário dos EUA (até agora), os europeus têm lembranças dolorosas das consequências de conceder a extremistas de direita o direito de buscar o poder democraticamente. Eles ainda recordam como Hitler chegou ao poder.

Infelizmente, essa aliança entre os EUA e a extrema direita europeia é bastante deliberada. O documento declara o desejo de proteger a Europa do “espectro da eliminação civilizacional” promovida pelas instituições da União Europeia, pela migração em massa, pela censura à “liberdade de expressão” e pela supressão da oposição política. O recado é explícito: “Nosso objetivo deve ser ajudar a Europa a corrigir sua trajetória atual”. Como os EUA pretendem “corrigir” essa trajetória? Evidentemente, ajudando os autoritários de direita de hoje, os neofascistas e os admiradores de Putin a chegar ao poder.

Grande parte do restante do documento soa vazia ou ridícula. Não há, por exemplo, qualquer estratégia coerente para lidar com a China. Também contém a crença firme de que os países continuarão a confiar nos EUA, não importa quão injusta, irracional e imprevisível seja sua conduta —especialmente no que diz respeito a tarifas e outros meios de extrair concessões. Sugere que os EUA podem forçar a América do Sul a uma condição de subordinação, apesar da crescente influência da China. Está convencido de que a supremacia tecnológica americana sobreviverá à guerra do país contra a ciência e à hostilidade racista contra imigrantes.

Mas uma afirmação é, de fato, importante: “Rejeitamos as desastrosas ideologias de ‘mudança climática’ e ‘Net Zero’, que tanto prejudicaram a Europa, ameaçam os Estados Unidos e subsidiam nossos adversários”. Eis, então, uma forma de entregar o futuro à China.

Para os europeus, acima de tudo, essa nova estratégia é a mais significativa. Ela mostra que estão sozinhos na defesa da Ucrânia. Pior: mostra que os EUA desejam desmontar a UE como instituição e entregar o poder aos bajuladores de Trump e de Putin. Será extremamente difícil para os europeus —marcados por uma impotência aprendida, fragmentados e traumatizados pelas memórias das duas guerras mundiais — reagirem. Mas não há alternativa, a não ser um colapso. Muito disso se aplica também ao Reino Unido, que decidiu embarcar no Brexit num momento que acabou se revelando desastroso.

O que fazer, então? O objetivo imediato deve ser apoiar a Ucrânia, com todos os meios necessários e da forma que for possível, rumo a uma paz justa e estável. A Europa também precisa criar um contraponto eficaz às ameaças russas. Uma excelente proposta de Philipp Hildebrand, Hélène Rey e Moritz Schularick para uma “governança e financiamento da defesa europeia” vai exatamente nessa direção.

Ao reler as palavras de Kennedy, imaginei uma versão satírica à Trump: “Exigiremos qualquer quantia, imporemos qualquer fardo, infligiremos qualquer dificuldade, nos oporemos a qualquer amigo e faremos amizade com qualquer inimigo para assegurar a riqueza e o poder de mim mesmo, de minha família e de meus amigos”.

Mas, mesmo que Trump fosse tão autocentrado e transacional quanto isso, o movimento Maga não é. Noah Smith argumenta que “a direita americana valoriza a Europa porque a vê como uma pátria cristã branca”. Se a Europa liberal de hoje quiser sobreviver, essas fantasias reacionárias precisam ser enfrentadas e derrotadas.



Fonte ==> Folha SP

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *