Feminicídio também é violência estatal – 04/12/2025 – Djamila Ribeiro

Ilustração de fundo verde e amarelo. Ao centro está presente um borrão da palma de uma mão humana, manchado na cor roxa.

As mobilizações que tomaram as redes sociais nas últimas semanas e prometem tomar as ruas durante estes dias não nasceram do acaso. Elas são resposta a uma sequência de assassinatos de mulheres que o país insiste em tratar como episódios isolados, quando se trata de um padrão.

Desde 2015, o Brasil conta com a Lei do Feminicídio, nº 13.104/2015, que alterou o Código Penal para reconhecer o assassinato cometido “por razões da condição de sexo feminino”. O Estado passou a reconhecer, em texto legal, que mulheres não morrem ao acaso, morrem porque são mulheres. Diz a lei: “Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve: 1º: violência doméstica e familiar; 2 º: menosprezo ou discriminação à condição de mulher”.

Na prática, o feminicídio segue sendo interpretado quase exclusivamente como crime doméstico, circunscrito à relação íntima ou familiar. Isso empobrece o debate e protege o verdadeiro problema —quando se empurra a violência para o âmbito privado, absolve-se a responsabilidade pública.

O caso de Julieta Hernández escancara esse impasse. Sua família luta para que o assassinato seja reconhecido pelo Estado como feminicídio com a justificativa de violência de gênero, já que a artista foi estuprada, torturada, queimada, assassinada e teve o corpo ocultado. Mas a justiça só reconhece o feminicídio quando o crime é cometido por companheiros. A disputa não é apenas jurídica, mas política. Negar essa classificação é negar que o ódio contra mulheres se manifesta também fora das paredes da casa, nos espaços públicos, no trabalho.

Mas o que pretendo discutir é que feminicídio é, também, violência de Estado. É feminicídio quando mulheres morrem por falta de atendimento médico, quando são abandonadas nos sistemas de saúde, quando não há casas-abrigo suficientes, quando delegacias especializadas não funcionam à noite, quando medidas protetivas não são fiscalizadas, quando o orçamento para políticas de proteção é cortado. A morte vai além do disparo fatal: é o resultado de uma cadeia longa de omissões.

O debate internacional avançou nesse sentido. Em “Counting Feminicide”, ou contando o feminicídio, a professora do MIT Catherine D’Ignazio destaca o trabalho da feminista Julia Monárrez Fragoso, que desenvolveu uma pesquisa pioneira sobre o tema em Ciudad Juárez, no México. No estudo, ela propôs a ampliação do conceito para significar não só a subordinação das mulheres pelos homens, mas também o papel de instituições como o Estado e a Igreja na criação de um clima de impunidade. Monárrez Fragoso também apontou a interseção entre os assassinatos em Juárez e as políticas econômicas neoliberais.

O trabalho de Monárrez foi utilizado como base, de 2003 a 2006, pela antropóloga e parlamentar do México Cristina Lagarde, que liderou a maior pesquisa estatal sobre feminicídio no México. A partir de Monárrez e Lagarde, feministas do continente construíram uma linha de pensamento que expande o crime para as mortes produzidas pela negligência do Estado, pela ausência de políticas públicas e pelo abandono institucional.

A filósofa política americana Shatema Threadcraft aprofunda essa análise ao tratar do feminicídio negro. No livro “Labors of Resurrection”, ela inclui como feminicídio a mortalidade materna, o encarceramento em massa e a negação sistemática de direitos básicos. Quando o Estado abandona corpos racializados, chamamos de fatalidade aquilo que é projeto.

Por isso, as autoridades deveriam ir além de discursos que reduzem o feminicídio à esfera doméstica. Precisam assumir a falência institucional. É também por isso que as mobilizações precisam ser independentes.

Movimento social não é assessoria de governo. Para ser eficaz, precisa ter autonomia para denunciar, pressionar e criticar, seja qual for o partido no poder. Se não, corre-se o risco de virar uma passeata com gritos de ordem, selfies e palanque político, mas sem a independência necessária para tomar atitudes —como acampar em um prédio público até que alguma medida efetiva seja tomada, por exemplo.

Não há radicalidade, mas um jogo sonso de consensos. Neutralizar a crítica em nome da governabilidade é uma forma sofisticada de perpetuar a violência.

A violência contra mulheres não se explica apenas por homens violentos, mas por um Estado que falha repetidamente em proteger, prevenir e cuidar. O agressor individual existe, mas é sustentado por uma engrenagem inteira que normaliza, relativiza e silencia.

Assisti recentemente a uma conversa entre Catherine D’Ignazio e Shatema Threadcraft no MIT e saí com uma convicção incômoda: o Brasil precisa atualizar não apenas suas estatísticas, mas sua compreensão política sobre o que estamos vivendo.

Enquanto insistirmos em tratar o feminicídio como drama privado, continuaremos enxugando sangue com discursos.



Fonte ==> Folha SP

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