“Gala Dalí” (1894-1982), mulher complexa e criadora icônica, que foi muito além do papel de musa surrealista, ganha vida no palco na vigorosa interpretação da atriz Mara Carvalho. Sua atuação tece uma personagem onde força e vulnerabilidade coexistem, desafiando a máxima de que “atrás de um grande homem há sempre uma grande mulher” – frase que, ao longo da história, eclipsou o papel de mulheres incríveis e talentosas como Camille Claudel, Jo van Gogh e Patrícia Galvão, para citar apenas algumas. Gala, nascida Elena Ivanovna Diakonova, foi figura essencial na vida e carreira do pintor Salvador Dalí (1904-1989), desempenhando papeis cruciais.
O cenário de Ulysses Cruz, que também dirige Mara, serve como reflexo do espírito de Gala. A predominância do branco e os azulejos ao fundo remetem a uma cozinha, um sanatório ou mesmo a um espaço da memória, criando um ambiente que é ao mesmo tempo íntimo e onírico, onde passado e presente se misturam sem fronteiras claras. Projeções assinadas por Emerson Brandt intensificam essa qualidade surreal, transformando o palco em um embate visual entre a lembrança e sua representação.
Outro destaque são os figurinos, assinados por grandes casas de moda e que são parte essencial da narrativa. Cada peça de roupa conta uma história sobre o jogo de poder que Gala dominava, revelando como ela transformava sua aparência em uma ferramenta de afirmação pessoal e profissional.
A dramaturgia foge da linearidade cronológica, optando por uma estrutura fragmentada que espelha o funcionamento da memória. Cenas da vida com o primeiro marido Paul Éluard (1895-1952), escritor e poeta francês, se entrelaçam com momentos decisivos ao lado de Dalí, enquanto reflexões sobre arte, dinheiro e mortalidade surgem como interlúdios poéticos. Essa abordagem permite que as contradições de Gala – sua generosidade criativa e seu pragmatismo, seu amor pela arte e sua busca por sucesso material – sejam exploradas sem a necessidade de uma reconciliação.
Na cena final, em que Gala, já idosa em seu castelo de Púbol, na Catalunha, revisita suas escolhas, Mara Carvalho consegue transmitir toda a ambiguidade de uma mulher que alcançou seus objetivos, mas não sem um custo. Nessa hora, a iluminação de Cesar Pivetti isola a atriz em um círculo de luz, enquanto as sombras ao redor parecem observar seus fantasmas. Já a trilha sonora de Dan Maia cria atmosferas distintas em cada fase da vida da personagem, adicionando camadas de significado sem cair no óbvio.
O grande mérito da produção está em sua capacidade de humanizar Gala, sem mitificá-la ou condená-la. Mara Carvalho e sua equipe criam com “Gala Dalí” uma meditação sobre criação artística, gênero e influência, que ressoa profundamente com os dilemas do nosso tempo.
Três perguntas para…
… Mara Carvalho
Como foi descobrir a importância de Gala Dalí além de ser “a mulher de Salvador Dalí”? O que mais te surpreendeu na trajetória dela?
Eu buscava uma conexão entre Espanha e Brasil, e nada mais estimulante do que Salvador Dalí. Ao aprofundar meu estudo dou de cara com Gala, uma figura icônica, extremamente cativante e com uma personalidade marcante. Forte, determinada e alimentada pela arte.
Uma mulher a frente do seu tempo, dominadora, de uma inteligência impar, mas também sensível. Ela expõe sua fragilidade ao se deparar com a maturidade, abandona tudo e se esconde do mundo.
Gala me surpreende com suas poesias, mas também na sua praticidade, na sua ousadia. Ela é plural. Amante, esposa, marchant, interlocutora, agente, gerente, produtora e “cuidadora” de Dalí. Entre outras coisas que me fascinaram ao conhecê-la.
Você mencionou que, assim como Gala, busca sua realização como artista em um contexto desafiador. De que maneira essa identificação influenciou sua interpretação?
Eu pensei, pesquisei e juntei mulheres com perfis parecidos, mulheres geniais, outras nem tanto, mas com garra e determinação das guerreiras; nessa cultura tão dominada por homens, pulularam mulheres que tiveram ou passaram por essa experiência. Estamos lutando, desde que o mundo é mundo, inclusive nos lugares mais comuns (onde tudo parece tão simples) por um espaço e pelo direito de sermos vistas sem preconceito e com respeito. Tudo é tão contemporâneo! Me identifico muito com Gala, vivi uma espécie de retaliação, senti na pele, ainda sinto como as pessoas colocam a mulher num lugar menor dando projeção mais ao ELE do que a ELA.
Gala teve uma relação complexa com a maternidade (rejeitando estereótipos da época). Como esse conflito em ser mãe e sua relação com a filha Cécile repercute com a mulher atual?
A maternidade não pode ser cobrada, não pode ser imposta, nem determinada pelo outro ou pela sociedade. Existe preconceito e julgamento de mulheres que não desejam ou não convivem bem com a maternidade. E não tem nada demais o fato de Gala não ter tido afeto incondicional por Cécile. Ela faz uma escolha e ponto. Eu tenho direito de escolha, todo mundo tem esse direito. Um homem nunca será mãe, jamais vai saber a grandeza, ou não, da maternidade e isso não o deixa menor, deixa?
Minha interpretação vai ao encontro das escolhas de Gala. Eu acredito e as defendo como se fossem minhas próprias escolhas.
Mi Teatro – rua Pamplona, 310 – Bela Vista, região central. Ter. a qui., 20h. Até 31/7. Duração: 65 minutos. A partir de R$ 80 (meia-entrada) em sympla.com.br
Fonte ==> Folha SP