Os recentes embates entre governo e Congresso em torno do IOF suscitaram dúvidas sobre a competência do Executivo para elevar impostos por decreto.
Para compreender o tema, é preciso assentar algumas premissas. No Brasil, tributo é prestação pecuniária compulsória, significando que: (a) é paga em reais; e (b) não depende da vontade do contribuinte. Logo, todo tributo, para ser tributo, precisa arrecadar. Exigências de prestação compulsória de serviços à sociedade —os mesários nas eleições, os jurados no Tribunal do Júri— não são tributárias.
Fixado que todo tributo arrecada, é preciso discernir entre as categorias de tributos existentes. Dentre uma miríade de classificações, importa a divisão entre tributos com função predominantemente fiscal e tributos com função predominantemente extrafiscal.
Um tributo que se volta à fiscalidade é aquele estruturado especialmente para carrear receitas aos cofres públicos. Já o extrafiscal é criado para induzir comportamentos da sociedade. Todo tributo será sempre mais ou menos fiscal (pois arrecadará em alguma medida) e mais ou menos extrafiscal (pois promoverá comportamentos em algum grau).
O Imposto de Renda e o ICMS são impostos com função fiscal forte e extrafiscal fraca. Existem para arrecadar em primeiro lugar. Não se ocupam de induzir comportamentos dos contribuintes, salvo em situações excepcionais, como nos benefícios fiscais para atração de investimentos.
O IPI e o IPVA são impostos com funções fiscal e extrafiscal médias. No IPI, os produtos industrializados são tributados, mas as alíquotas são diferenciadas conforme o comportamento que se deseje promover: motocicletas, por exemplo, pagam mais imposto do que bicicletas. No IPVA, os automóveis são anualmente tributados, porém há desconto para aqueles que gerem menor impacto ambiental. Em síntese, essa categoria de tributos busca equilibrar a função fiscal com o alcance de outras finalidades de interesse social.
Por fim, há os tributos de fiscalidade fraca e extrafiscalidade alta. Os impostos de importação (II), exportação (IE) e sobre operações financeiras (IOF) integram esse grupo. Sua arrecadação é de menor relevo para as contas públicas, embora jamais insignificante. Prepondera a função extrafiscal: proteger o mercado nacional (II), impedir o desabastecimento de bens no País (IE), regular o mercado de crédito, câmbio, seguros, títulos e valores mobiliários (IOF). Aqui o peso atribuído à extrafiscalidade é maior do que à fiscalidade.
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Isso posto, é preciso indagar: uma elevação dos impostos de fiscalidade fraca, caso declaradamente vise a aumentar a arrecadação, é inconstitucional? A resposta é, a princípio, negativa. Afinal, se todo tributo arrecada, a elevação de alíquotas é inerente ao seu próprio caráter. Somente haveria inconstitucionalidade se o aumento contrariasse as finalidades extrafiscais almejadas. Por exemplo, um aumento de imposto de importação sobre bens escassos em território nacional seria impróprio – não pelo aumento em si, mas pelas consequências indesejadas no mercado interno. A discussão se desloca, portanto, para um outro plano. Embora inicialmente válido, o aumento deixaria de sê-lo por gerar impactos na sociedade contrários àqueles que o tributo deveria promover.
Em diversos impostos de extrafiscalidade forte ou média, como IOF e IPI, a Constituição permite que o Poder Executivo modifique as respectivas alíquotas por meio de decreto. A autorização não é sem limites: o Congresso Nacional deve, em primeiro lugar, aprovar lei contendo as alíquotas mínimas e máximas do tributo. É apenas dentro do gradiente fixado pelo legislador que o Executivo pode operar.
No recente aumento do IOF, o que se teve foi um ato do Poder Executivo (publicação de decreto), elevando algumas alíquotas do imposto (dentro de critérios de racionalidade, expostos à sociedade), observando os limites máximos previamente fixados pelo Congresso na lei do IOF, publicada em 1994. Ao longo das últimas três décadas, foram inúmeras as modificações de alíquotas desse imposto, todas operadas pelo Poder Executivo. Agora, por primeira vez, questiona-se o exercício desse direito.
Qual o argumento? Conforme o Congresso Nacional, que editou decreto legislativo para sustar os efeitos do aumento do IOF, o Executivo teria ido além dos seus poderes quando elevou tributo com alta extrafiscalidade com vistas a arrecadar. Se esse era o objetivo, então somente um tributo de extrafiscalidade média ou baixa poderia ser utilizado.
O argumento não procede. Se assim o fosse, as receitas do IOF sequer deveriam constar do orçamento público. Embora reduzida, a arrecadação com esse imposto é importante para o fechamento das contas públicas, especialmente em um país que tem metade da arrecadação federal comprometida com o serviço da dívida pública.
Ignorar a fiscalidade do IOF significa negar-lhe o caráter arrecadatório e, por conseguinte, sua própria natureza tributária. Um telefone celular, mesmo com dezenas de aplicativos e uma lanterna, é, ainda assim, um telefone celular, apto a fazer e receber ligações. Uma camisa do time do coração, ainda que manto sagrado a ser utilizado aos domingos, não deixa de ser uma vestimenta. Um imposto que regula mercados de câmbio, crédito e seguros é, antes de tudo, um imposto. Utilizado de forma correta, como o foi, nada há a ser sustado, salvo a própria controvérsia em si.
Fonte ==> Folha SP