Para efeitos dramáticos, o céu deveria estar cinzento, e uma chuva pequena, triste, deveria molhar a Terra. Não é o caso. Céu azul, iluminado por um Sol generoso —e, aqui embaixo, famílias e crianças e amigos vivendo o dia na cidade.
A cidade é Hiroshima. Estou sentado em frente à Cúpula da Bomba Atômica, um edifício construído pelo arquiteto tcheco Jan Letzel em 1915. É um dos poucos edifícios que ficaram de pé depois da explosão daquele dia 6 de agosto de 1945 —faz hoje 80 anos.
As casas de Hiroshima eram, na maioria, construções frágeis de madeira, facilmente pulverizadas pela explosão. O edifício de Letzel, com sua cúpula de cobre, era feito de concreto e metal. Como a explosão ocorreu diretamente acima, a 600 metros do solo, o edifício absorveu o impacto e resistiu.
Os japoneses preservaram o edifício exatamente como ele ficou naquela manhã. O contraste entre este fantasma do passado e a Hiroshima moderna funciona como a primeira assombração.
Ao lado do edifício, o Memorial da Água. Vejo japoneses de todas as idades depositando ali copos de água em memória das vítimas. “Água” foi a última palavra que muitas pronunciaram nos últimos segundos de vida. É a segunda assombração.
Mas existe uma terceira: tentar entender como foi possível arrasar Hiroshima e Nagasaki nos momentos finais da Segunda Guerra Mundial. Conheço as teorias, os cálculos, as versões de ambos os lados.
O meu guia em Hiroshima, neto de um sobrevivente, apresenta a dele: as bombas foram inúteis porque o imperador Hirohito estava disposto a se render. Foram usadas cinicamente para assustar a União Soviética, que já mostrava as garras no Pacífico.
Há historiadores que discordam: rendição não fazia parte do vocabulário imperial japonês, e a continuidade da guerra teria provocado milhões de vítimas entre americanos e japoneses. As bombas abreviaram a guerra e, paradoxalmente, salvaram vidas.
A verdade, como sempre, é mais complexa —e o historiador Richard Overy, em “Rain of Ruin: Tokyo, Hiroshima and the Surrender of Japan” (Allen Lane, 206 págs.), tem sido o meu Virgílio nesta peregrinação pela memória.
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A primeira virtude do livro está no fato de lembrar que Hiroshima e Nagasaki não foram casos isolados, tirados do nada. Nos meses anteriores, 215 cidades ou vilarejos japoneses foram arrasados com bombas incendiárias —locais que, apenas em teoria, eram alvos militares legítimos.
O caso mais brutal dessa campanha ocorreu em Tóquio, na noite de 9 para 10 de março, com 100 mil mortos civis.
Há várias razões que explicam a decisão americana. Forçar a rendição do Japão era a primeira delas.
Mas havia outras, explica Overy: as rivalidades corporativas entre a Força Aérea e o Exército para ver quem era mais eficaz; a desumanização do inimigo, tão comum na mídia americana; a vingança por Pearl Harbor e pela Marcha da Morte de Bataan, quando 80 mil prisioneiros americanos e filipinos foram forçados a marchar (e muitos deles a morrer) depois da derrota nas Filipinas. Tudo isso fez parte dos cálculos.
As bombas de Hiroshima e Nagasaki, que em 1945 suscitaram poucos dilemas éticos entre todos os envolvidos (cientistas, militares, políticos), seriam apenas mais um degrau na campanha militar contra o Japão.
E quando se pergunta se as bombas atômicas foram mesmo necessárias, talvez a questão historicamente revelante seja saber por que elas pareceram necessárias em 1945, adverte Overy.
A resposta mais curta insiste na mesma tecla: era preciso forçar a rendição, acabar com a guerra e salvar as vidas de soldados americanos.
A esse cardápio somava-se ainda a ambiguidade do governo japonês em aceitar os termos da Declaração de Potsdam, emitida em julho de 1945 pelos Estados Unidos, Reino Unido e China, exigindo a rendição incondicional do Japão.
A segunda grande virtude da obra de Richard Overy está na forma detalhada como explica essa ambiguidade, levando o leitor ao centro do poder japonês.
Sim, são conhecidas as divisões do Exército sobre o curso a seguir: lutar até o fim ou buscar uma forma de terminar a guerra preservando a Casa Imperial?
As divisões continuaram mesmo depois de Hiroshima, contestando a versão habitual de que foram as bombas atômicas que determinaram a rendição japonesa.
É uma meia-verdade. As “decisões sagradas” do imperador de aceitar o fim da guerra —a palavra “rendição” nunca foi pronunciada— explicam-se por uma confluência de fatores: os bombardeios, sem dúvida, mas também a entrada da União Soviética na guerra, dois dias depois de Hiroshima.
Sorrio com essa ideia: o medo do comunismo talvez tenha sido tão eficaz quanto a ameaça de uma terceira bomba atômica (sobre Tóquio, a próxima da lista). Mas também sorrio com as últimas páginas do livro de Richard Overy.
A guerra terminou em 2 de setembro de 1945. Mas, entre os festejos, aqueles que promoveram a construção e o lançamento das bombas atômicas começaram a fazer outros cálculos: o que aconteceria se essas mesmas armas fossem usadas contra cidades americanas ou inglesas?
Vieram os estudos e simulações. No Reino Unido, concluiu-se que a bomba de Hiroshima, em uma área urbana com densidade média de construção, provocaria de imediato 50 mil mortos. Nos Estados Unidos, os resultados foram igualmente assustadores.
O gênio estava fora da lâmpada —e fora da lâmpada ficou, até hoje, a pairar sobre a espécie Homo sapiens.
“Você me criou”, disse o monstro para o dr. Frankenstein, “mas agora sou eu seu mestre”.
Essa é, talvez, a grande lição de Hiroshima.
Fonte ==> Folha SP