João Cabral inspira musical sobre migração urbana – 08/07/2025 – Mise-en-scène

João Cabral inspira musical sobre migração urbana - 08/07/2025 - Mise-en-scène

O musical “João”, parte final da trilogia “Conexão São Paulo–Pernambuco”, constrói um intenso diálogo entre literatura, história social brasileira e linguagem teatral. Ao unir a vida e a obra de João Cabral de Melo Neto (1920-1999) a uma narrativa contemporânea, o espetáculo constrói uma ponte entre passado e presente, revelando como as questões agrárias e migratórias do Nordeste ainda ecoam na urbanização desigual do Brasil.

A trama mistura elementos biográficos do poeta pernambucano com a trajetória fictícia de seu personagem homônimo, criando um jogo metateatral em que criador e criatura se encontram. Essa abordagem surrealista permite uma reflexão sobre autoria, identidade e destino, enquanto o personagem João migra para o Sudeste em busca de oportunidades — uma realidade que remete tanto ao retirante de “Morte e Vida Severina” quanto aos migrantes de hoje.

A inserção de Gaivota, uma travesti artista que transforma a vida do protagonista, amplia a discussão sobre diversidade e resistência no espaço urbano, mostrando que a marginalização não se restringe apenas ao êxodo rural, mas também às exclusões dentro das grandes cidades.

João Cabral, em sua obra-prima, denuncia a miséria nordestina como fruto de estruturas injustas e o musical ressignifica essa crítica ao transpor o sofrimento do “severino” para a realidade paulistana, evidenciando que a pobreza e a luta pela sobrevivência persistem, mesmo em novos cenários. A narrativa paralela do poeta narrando sua própria história enquanto observa o personagem reforça a ideia de que a arte é um espelho da sociedade — e que as mesmas desigualdades que ele retratou nos anos 1950 continuam atuais.

A trilha sonora original, composta por Vitor Rocha e Marco França, bebe da influência de Gonzaguinha — artista conhecido por sua poesia social e crônica musical do Brasil. Essa escolha não só enraíza o espetáculo na cultura popular, mas também reforça seu caráter político. As canções fazem contraponto lírico à dureza da trama, assim como a música nordestina tradicional faz com a seca e o sofrimento.

A menção aos amigos de João Cabral — Manuel Bandeira, Vinicius de Moraes e Carlos Drummond de Andrade, entre outros — sugere que o musical pode explorar não só a solidão do migrante, mas também os conflitos e cumplicidades no meio intelectual brasileiro. Essas relações, marcadas por admiração e tensão, refletem as contradições de um país que produz grandes artistas enquanto mantém profundas disparidades sociais.

“João” se afirma como uma obra híbrida e indispensável, que utiliza o formato musical — muitas vezes associado ao entretenimento leve — para discutir temas densos. Ao resgatar a potência crítica de João Cabral e transpor suas questões para o palco contemporâneo, o espetáculo não apenas homenageia o poeta, mas também questiona o espectador sobre os “severinos” que ainda caminham pelas ruas de São Paulo e os muitos “joões” que migram, sonham e resistem.

Três perguntas para…

… Kleber Montanheiro

Quais foram os principais desafios em dirigir um musical que mistura realismo, surrealismo e referências literárias?

Dirigir um musical é sempre um desafio, porque precisamos integrar múltiplas linguagens em uma linha única de pensamento. Criar uma concepção que una o texto cantado, o texto falado, os arranjos, a direção de atores, a interpretação e toda a encenação guiada pela música é complexo – justamente a pesquisa que me interessa fazer. Tenho refletido muito sobre a necessidade de alinhar todas essas camadas.

No caso de “João”, o desafio era ainda maior. Queria propor uma forma diferente de fazer musical, especialmente por se tratar de uma obra totalmente original, com materiais genuinamente brasileiros: João Cabral de Melo Neto e Gonzaguinha como inspirações centrais. A maior dificuldade foi transformar tudo em dramaturgia – não apenas o texto escrito (que o Marcelo Marcus Fonseca criou a partir de João Cabral, a meu pedido, fechando a trilogia), mas também as outras camadas.

Foi um trabalho coletivo. Pedi que a equipe criativa pensasse cada elemento – música, luz, cenografia, figurino – como extensão da dramaturgia. A peça parte do realismo (com um pé no fantástico, talvez no surrealismo, como você menciona), mas se expande em camadas poéticas que exigiam esse diálogo constante. O desafio principal foi justamente garantir que todas essas linguagens visuais e sonoras carregassem dramaturgia, complementando-se organicamente.

Como “João” dialoga com os dois espetáculos anteriores da trilogia (“Nossos Ossos” e “Tatuagem”)?

“João” dialoga diretamente com os espetáculos anteriores da trilogia sob um guarda-chuva temático comum: migração, liberdade, amor, diversidade e – principalmente – a violência da opressão.

Em “Nossos Ossos” (o primeiro da série), esses temas se materializam na relação entre amor e morte, e na pressão da cidade grande. A história começa em São Paulo, quando Heleno de Gusmão – o protagonista – parte para Pernambuco carregando um corpo morto, retornando à terra natal. Esse mote, adaptado por Daniel Vieira a partir do romance de Marcelino Freire, já estabelece o olhar que percorrerá a trilogia.

Já “Tatuagem” (segundo espetáculo) se passa em Pernambuco e aborda a opressão política da ditadura militar: a violência contra corpos diversos que resistem por liberdade.

Por fim, “João” devolve a narrativa a São Paulo, inspirando-se em “Morte e Vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto, mas invertendo o caminho. Se o João (Vitor Vieira) migra do sertão para o litoral – um paralelo do próprio Cabral, que se mudou para o Rio – nosso João “severino” (Dudu Galvão) vem para o São Paulo em busca de uma vida melhor. Criamos uma fábula urbana que mantém os temas da migração e diversidade, mas sob nova violência: a metrópole e a especulação imobiliária esmagando seus habitantes. Na chegada, o encontro do rapaz ingênuo com Gaivota (Marina Mathey) explicita esse choque entre esperança e opressão.

O diálogo entre as três peças está justamente na abordagem singular de cada uma sobre esses eixos compartilhados. Todas tratam dos mesmos temas, mas com pontos de vista distintos – e é isso que define a concepção de cada espetáculo.

Como foi a colaboração com Vitor Rocha e Marco França para criar as músicas originais?

A colaboração com Vitor e Marco foi intensa e muito especial. Apesar do tempo curto – criamos letras, músicas, arranjos e a direção musical em apenas dois meses –, o processo foi profundamente orgânico. O texto do Marcelo, é verdade, já vinha sendo construído há um ano, com base em “Nossos Ossos” (tanto o romance quanto a adaptação), no roteiro de “Tatuagem” e nos espetáculos em si. Conversamos muito sobre esse fechamento da trilogia, pois eu queria que “João” fosse original, mesmo com suas inspirações claras em João Cabral e Gonzaguinha.

Marcelo chegou com um material bem amadurecido, reescrito e discutido. Marco acompanhou desde as primeiras versões, enquanto Vitor entrou mais tarde, já encontrando espaços cuidadosamente deixados na dramaturgia para a música. Nosso diálogo foi tão próximo que parecia natural: decupávamos o texto juntos, definindo o que viraria música, onde a história precisava avançar pelo canto e como as letras se encaixariam. Isso só foi possível porque Marcelo estruturou o texto com essa abertura, e porque Marco – que fez a direção musical dos três espetáculos – já tinha um método consolidado.

Foi um encontro artístico feliz. Vitor e eu (e Marco também) já flertávamos com a ideia de trabalhar juntos há anos. Na prática, esmiuçamos cena a cena: eles sugeriam ideias como “essa música precisa expressar o que Noêmia sente” ou “aqui um solo de Bia revela seu interior”, e eu propunha contrastes musicais “aqui queremos algo pesado, depois um alívio cômico”. Marco respondia com soluções práticas: “Então vamos com piano e voz, entrando com baixo só no final”. Até trocadilhos surgiram nesse vai e volta – como a música das comidas no segundo ato, ideia do Vitor.

No fim, era um trabalho a oito mãos (contando com o Marcelo). Para você ter uma ideia concreta: ele nos enviou o texto sem indicações musicais específicas, apenas com referências às canções de Gonzaguinha que inspiraram cada cena. Nossa alquimia consistia em fundir texto, cena e estudo dessas referências para gerar letras originais que servissem à dramaturgia. Foi assim que “João” se tornou um musical autoral – nascido de uma colaboração rara, onde todos se alimentavam mutuamente.

Espaço Cia. da Revista – al. Nothmann, 1.135 – Santa Cecília, região central. Sex. a dom., 20h. Até 3/8. Duração: 120 minutos, com 15 minutos de intervalo. A partir de R$ 20 (meia-entrada) em sympla.com.br.



Fonte ==> Folha SP

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