Na Faixa de Gaza, sob um cessar-fogo zumbi, ainda ouvem-se explosões esporádicas e o ruído monótono, letal, de armas automáticas. Mas, atrás da guerra semi-congelada, deflagra-se uma segunda guerra, que se desenrola na esfera do planejamento urbanístico e arquitetônico. De seu desenlace depende o futuro do território —e, talvez, da própria Palestina.
O conflito envolve dois planos antagônicos sobre a reconstrução física da paisagem humana. Dois anos de bombardeios inclementes reduziram a escombros os assentamentos urbanos de uma das áreas mais densamente povoadas do planeta. Quase 300 mil casas e apartamentos converteram-se em 60 milhões de toneladas de entulho. De certo modo, o resultado forma o sonho do urbanista moderno: começar do zero, traçando linhas ideais sobre o papel em branco.
O Plano Voisin (1925), de Le Corbusier, exigia a demolição completa de uma extensa porção do centro de Paris, para dar lugar a uma coleção de torres cruciformes de 60 andares rodeadas por conjuntos habitacionais geométricos. O fantasma do autor principal da Carta de Atenas, manifesto original da arquitetura moderna, circula entre as ruínas de Gaza. Sua visão está condensada no Plano Great, formulado por conselheiros americanos e israelenses com a contribuição do instituto de Tony Blair.
O Great formaliza o conceito da “Riviera Gaza”, celebrizado no vídeo gerado por IA e repostado por Trump, em fevereiro. Segundo o plano, o urbanismo precário de Gaza está na raiz da “insurgência permanente” e deve ser substituído por uma série de “modernas cidades planejadas inteligentes”.
As imagens conceituais exibem uma paisagem de imensas torres futuristas cercadas por subúrbios repetitivos e alinhadas ao longo de uma artéria de autopistas paralela ao litoral. “A orla de Gaza pode ser muito valiosa”, proclamou Jared Kushner, genro de Trump, numa conferência em Harvard. A “Riviera Gaza” expressa, na esfera urbanística, a ambição criminosa da limpeza étnica: para saltar do computador à realidade, exige a “relocalização voluntária” de, ao menos, um quarto da população do território.
A resistência urbanística ganhou forma num projeto alternativo: o Plano Fênix, elaborado por cerca de 700 palestinos, especialistas e estudantes, dos territórios ocupados e do exterior, sem a participação do Hamas. “Há uma longa herança, cidades que existiram por milênios. Não é boa prática simplesmente ignorar tudo e começar de novo”, esclarece Shelly Culbertson, pesquisadora americano de um instituto americano independente. O Fênix almeja reconstruir, não reinventar.
Segundo o plano palestino, a nova Gaza seria parecida com a velha, mas modernizada e arborizada —e, crucialmente, sem os túneis do Hamas. As cidades renasceriam nos mesmos lugares, como núcleos compactos, densos, constituídos por edifícios modestos de quatro a oito andares e vias de circulação organizadas em torno do transporte público. Nos seus arredores, ressurgiriam as tramas de pequenos campos agrícolas familiares.
O valor do passado emerge como cisão entre os conceitos antagônicos. O Great abomina a história: quer anulá-la. Já o Fênix visualiza um futuro enraizado na tradição. A sua própria existência, na tela dos computadores, indica a persistência de uma nação palestina que busca o direito de estabelecer-se como Estado.
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Fonte ==> Folha SP
