Lula acerta ao deixar aliança do Holocausto, diz professor – 03/08/2025 – Mônica Bergamo

Lula acerta ao deixar aliança do Holocausto, diz professor - 03/08/2025 - Mônica Bergamo

No mês passado, o governo do presidente Lula retirou o Brasil da Aliança Internacional para a Memória do Holocausto (IHRA).

A decisão gerou uma avalanche de críticas, do governo de Israel à Confederação Israelita do Brasil (Conib), que viu no ato um “retrocesso moral”.

Professor do programa de História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisador de antissemitismo da Universidade Hebraica de Jerusalém, em Israel, onde fez mestrado e já deu aulas, Michel Gherman diz que “acusar Lula antissemita” por causa da decisão é um “absurdo”.

Gherman, que é judeu, critica duramente a entidade, a quem acusa de ser usada por “um lobby evangélico, branco e de direita” que adota definições de antissemitismo que visam criminalizar críticas a Israel e silenciar a mídia e intelectuais em todo o mundo.

“Transformar a maior liderança política da história do Brasil em alguém que odeia os judeus pode interessar a muita gente. Mas não interessa aos judeus do Brasil. É um erro”, afirma.

Ele afirma ainda que Israel “pode e precisa ser criticado” e diz que o genocídio em Gaza ameaça a legitimidade do país.

GOVERNO E ISRAEL

O governo Lula se retirou da Aliança Internacional para a Memória do Holocausto (IHRA), o que gerou polêmica na comunidade judaica. Foi uma demonstração de antissemitismo?

Setores amplos da comunidade judaica, inclusive progressistas, têm questionado a saída do Brasil da IHRA. Eu acho que isso se deve a um erro na forma como a decisão foi levada [a público pelo governo].

Mas é fundamental, antes de mais nada, entendermos o que significa a IHRA e por que alguns intelectuais e professores universitários, dentro e fora do Brasil, têm questões com essa organização. Eu sou um deles.

Quais seriam essas questões?

O antissemitismo é tão perigoso quanto o racismo. Ele é uma forma de racismo. Com antissemita não se conversa. Com racista não se conversa. Quando o antissemita senta, você se levanta da mesa. Ele não tem direito de expor suas opiniões porque coloca em risco grupos específicos. Tal qual o racista.

O debate sobre o racismo prepondera porque o grupo que está em risco no país é o dos afrodescendentes. Os judeus não estão em risco cotidiano no Brasil. Mas vamos pensar estrategicamente no que significa acusar um presidente [Lula] eleito três vezes pelos brasileiros de ser antissemita. No que significa acusar a liderança do maior partido de esquerda da América Latina de ser antissemita.



Essa compreensão de que não se pode criticar Israel não só é equivocada, como ela produz antissemitismo. São definições [da IHRA] que permitem a perseguição a intelectuais. Nos EUA, na Alemanha, isso já está acontecendo

E o que significa?

Significa desconsiderá-lo como alguém com quem é possível conversar. Significa deslegitimá-lo, transformá-lo em alguém que você tem que se levantar da mesa quando ele se senta. É muito sério. É muito grave.

Este presidente [Lula] instituiu o Dia do Holocausto no Brasil [em 2024]. Visitou a sinagoga de Recife, a primeira das Américas. Nunca deixou de falar da importância da existência do Estado de Israel e do papel do Brasil em sua criação.

Na década de 1980, este presidente esteve em Israel quando ainda era apenas uma liderança política. Se encontrou com sindicalistas e com partidos progressistas do país.

E por que o acusam de antissemita?

Essa tentativa de dizer que Lula é antissemita já vem de algum tempo. Eu estudava na Universidade Hebraica de Jerusalém quando Lula visitou Israel e disseram que ele se negou a visitar o Museu do Holocausto. Ora! Eu conheço o guia que esteve com o Lula no museu. Tem fotos da visita.

A saída do Brasil da IHRA se transformou em mais uma oportunidade para setores que, antes de serem judeus e de estarem preocupados com o Holocausto, querem produzir um discurso anti-lulista. A quem interessa dizer que Lula é antissemita?

A quem?

As pessoas que não querem ver uma liderança como ele novamente na Presidência da República. Lula é visto por setores importantes das classes médias brasileiras como alguém que não pode estar onde está.

E aqui, vamos falar a verdade: Lula erra. E erra muito. Quando ele fala que o que ocorre em Gaza só é comparável ao que Hitler fez com os judeus, é um erro. Houve outros genocídios desde então. Dores não são comparáveis. Ele pode ser criticado por isso.

Agora, transformar aquela que, segundo historiadores importantes, é a maior liderança política da história do Brasil, eleito presidente três, talvez até quatro [caso concorra e vença em 2026], em alguém que odeia os judeus pode interessar a muita gente. Mas não interessa aos judeus do Brasil. É um erro.

[Entidades judaicas] Chamam ele de antissemita e depois pedem um encontro? Querem conversar?



Nada no judeu justifica a ideia de que ele não pode produzir-se nazista. O que o judeu tem de especial que não pode produzir racismo contra outro grupo?

Eu queria insistir no questionamento sobre a saída do Brasil da IHRA.

Vamos lá. A IHRA foi criada em 1998 para manter a memória e combater o negacionismo histórico do Holocausto —fruto de um antissemitismo contemporâneo que produz a ideia de que o judeu é tão forte e tão poderoso que domina o mundo a ponto de criar a história de um genocídio contra si.

Ele cria a ideia de que, diante de um grupo tão poderoso, a destruição e o extermínio são as únicas possibilidades.

E por que a IHRA passou a ser questionada?

A partir da segunda década dos anos 2000, a IHRA passou a ser instrumentalizada por grupos conservadores, por lobistas dos EUA que defendiam não só a existência de Israel mas, fundamentalmente, as práticas políticas do governo de Israel. E esses grupos incorporaram na definição de antissemitismo da IHRA elementos que podem controlar o debate público.

O que isso significa?

Significa, por exemplo, que dizer que Israel tem políticos comparáveis aos nazistas será considerado antissemita.

Como historiador, eu digo que há, sim, possibilidade concreta de se comparar discursos de um Ben-Gvir [ministro da Segurança de Israel], de um [Bezalel] Smotrich [ministro das Finanças de Israel], com os [discursos] dos nazistas.

O nazismo é um fenômeno histórico. Ele não existiu para nunca mais se repetir. Ele foi derrotado militarmente, mas segue existindo como ideia. O judeu foi vítima do nazismo não porque era judeu, mas porque o nazismo decidiu que ele seria vítima.

Nada no judeu justifica o preconceito contra ele, e principalmente o seu extermínio. Da mesma maneira, nada no judeu justifica a ideia de que ele não pode produzir-se nazista. Isso é história!



O governo brasileiro não poderia entrar na IHRA neste momento, principalmente por causa do uso político que a extrema direita faz da questão judaica e de Israel. Acusar o Lula de antissemita por isso é um absurdo.

Um judeu pode ser nazista?

É claro. O preconceito, a discriminação, a percepção de que a alteridade [colocar-se no lugar do outro] deve ser exterminada é produto de condições históricas específicas. Da mesma maneira que o judeu pode ser vítima disso, por que ele não pode ser algoz ou elemento? O que o judeu tem de especial que não pode produzir racismo contra outro grupo?

ARMA POLÍTICA

O senhor pode citar exemplos?

Os discursos de Ben-Gvir e de Smotrich afirmando que não há inocentes em Gaza podem, sim, ser comparados aos dos nazistas que produziram a ideia de que não havia inocentes nas aldeias judaicas do leste da Europa.

Eu seria antissemita ao dizer isso? É claro que não. O que as definições da IHRA andam produzindo é a perseguição contra intelectuais. Inclusive intelectuais judeus. E hoje conservadores, inclusive não judeus, são os maiores defensores da IHRA.

No Brasil, quem levou adiante o projeto de lei que implementa [as diretrizes da IHRA] foi o [ex] ministro [da Saúde, Eduardo] Pazuello.

Jair Bolsonaro era candidato em 2017 quando foi a um clube judaico e disse, por exemplo, que os quilombolas são animais e não servem nem para reproduzir. Que há raças boas e ruins. Eu não posso acusá-lo de ter um discurso com gramática nazista? Seria banalização?

Banalização é não falar sobre o nazismo. A sacralização de um fenômeno histórico produz a incapacidade de ele ser relevante. A história não é sagrada. Ela precisa ser estudada e comparada. Se o nazismo nunca mais vai se repetir, por que eu tenho que estudá-lo?



O apoio que os judeus dos EUA dão ao Partido Democrata chega a 80%. É claro que não estamos falando de um lobby de massas judeu a favor do Partido Republicano. Estamos falando de outra coisa.Trump coloca Israel no lugar dos evangélicos de direita. De uma branquitude, e não dos judeus como povo que tem direito a um território

Como se deu o que senhor chama de instrumentalização do antissemitismo?

O antissemitismo é um fenômeno importante, histórico e perene, que segue existindo e ameaça a democracia. Mas setores da direita têm utilizado o antissemitismo como uma espécie de racismo contra brancos. E isso é muito perigoso.

ANTISSEMITISMO

Por que?

É como se fosse possível competir. “Ah, vocês estão falando dos negros, mas os judeus [também] foram perseguidos.” A direita pretende, e esse é o risco, dizer que os brancos podem também ser vítimas de racismo colocando, para isso, os judeus como brancos.

A tomada da IHRA pela direita, portanto, tem a ver com dois elementos: o primeiro deles é na perspectiva de uma gramática racista contra brancos – aquilo que chamam de racismo reverso.

O segundo é o vínculo da direita, judaica ou não judaica, com a ideia de que criticar as práticas de Israel, criticar o governo de Israel de maneira radical é antissemitismo. Israel pode e precisa ser criticado. Quem considera que críticas a Israel são não legítimas não entende o que significa a existência de Israel como estado normal para um povo normal que lá vive.

Essa compreensão de que não se pode criticar Israel não só é equivocada, como ela produz antissemitismo. São definições [de antissemitismo da IHRA] que permitem a perseguição a intelectuais. Nos EUA, na Alemanha, isso já está acontecendo com muita frequência.

ALIANÇA DO HOLOCAUSTO

E no Brasil?

O governo brasileiro não poderia entrar na IHRA neste momento, principalmente por causa do uso político que a extrema direita faz da questão judaica e de Israel. Acusar o Lula de antissemita [porque o governo deixou a IHRA) é um absurdo.

Justificar a existência da IHRA como referência única no debate do Holocausto é absurdo. Ela deixou de ser vinculada exclusivamente à memória do Holocausto e é [hoje] vinculada a Israel e a definições questionáveis de antissemitismo.

O que eu estou propondo é que haja a possibilidade de o governo incorporar definições mais democráticas de antissemitismo e de memória do Holocausto que constituem menor risco à democracia. Que não são uma ameaça de silenciamento aos intelectuais e à mídia.

Eu justifico aqui a existência da Declaração de Jerusalém, que é assinada por intelectuais israelenses e palestinos contra o antissemitismo como fenômeno da modernidade.

O lobby que garante a IHRA como referência não é judaico. Ele é evangélico, branco e de direita.

Com raízes nos EUA?

O próprio Netanyahu fala que seus grandes aliados não são mais os judeus. O apoio que os judeus dos EUA dão ao Partido Democrata chega a 80% nas eleições. É histórico e perene.

É claro, portanto, que não estamos falando de um lobby de massas judeu a favor do Partido Republicano [de Donald Trump].Estamos falando de outra coisa.

E qual é a outra coisa?

É o sionismo cristão. É a ideia de Israel ser apoiado por grupos brancos e cristãos. É o famoso nacionalismo cristão citado pelo [teólogo] Ronilson Pacheco, com quem estou escrevendo um livro, e que parte de uma gramática e de uma perspectiva de conversão final dos judeus ao cristianismo.

E, nessa perspectiva do evangélico, se o Holocausto é sagrado, e não produto de um processo histórico, ele é sacrificial. Há uma relação vinculante entre as vítimas e o que aconteceu com elas. Por isso, é fundamental que ele seja separado dos outros genocídios. É isso que produz a ideia de vincular o Holocausto a Israel e ao sionismo.

A ordem pós-Segunda Guerra Mundial está sendo agora ameaçada pelo Trump, que coloca Israel no lugar que ele quer. Que é o lugar dos evangélicos de direita. Dos evangélicos brancos. De uma branquitude, e não dos judeus como povo que tem direito a um território.

GUERRA

O que ocorre em Gaza é um genocídio?

Vou me apropriar das palavras de um intelectual de altíssimo nível, o [professor de estudos sobre Holocausto da Universidade Brown, nos EUA] Omer Bartov: “Eu sou um pesquisador do genocídio, eu reconheço um quando eu vejo”. Como disse a historiadora Hannah Yablonka, dos Museus dos Guetos em Israel, uma referência em estudos do genocídio: o que acontece em Gaza é produto de vingança, e não de estratégia. E vingança produz genocídio.

Por que é tão difícil, para muitos judeus, aceitar críticas a Israel sem entendê-las como antissemitas?

É preciso entender a dificuldade que pessoas com vínculos radicais com Israel, como eu, têm de dizer que o país está praticando genocídio.

Nós vivemos a vida inteira falando sobre “nunca mais” e memória do Holocausto. Quando falamos sobre genocídio, nos colocamos num lugar fundamentalmente difícil e dolorido.

Eu reconheço que o que acontece em Gaza é genocídio. Isso não significa que não me dói. Essa geração, e a geração dos meus filhos, que têm família em Israel, vão crescer sendo acusados de que o país com quem têm vínculos profundos praticou um genocídio.

Entender isso é fundamental. Os judeus que estão aqui no Brasil comendo em restaurante kosher, indo em sinagogas, indo para a praia, não são israelenses. Não têm poder de decisão. Essas pessoas precisam ter tempo para entender que nada justifica o tamanho da tragédia que o Exército israelense está produzindo em Gaza.

É como se fosse um negacionismo?

Esse é o risco. Se você começa a negar o genocídio dos outros, o seu genocídio vai ser negado.

Não é um debate político e ideológico. É um debate sério, sociológico, historiográfico e jurídico. E que precisa ser feito. É preciso que se exija de Israel que ele funcione a partir da lógica que o fundou. Israel precisa refazer-se a si próprio. Um país que ocupa territórios produzindo não-cidadania nos ocupantes está sob risco grave de legitimação.

E se isso não acontecer?

Se não funcionar efetivamente a partir da criação de um Estado palestino a seu lado, ou de alguma configuração que permita o retorno de direitos às populações que foram expulsas daquele território, Israel vai seguir existindo. Mas vai perder a sua legitimidade. Com tudo o que está acontecendo agora, a gente vê que isso é absolutamente concreto.

com DIEGO ALEJANDRO, KARINA MATIAS e VICTÓRIA CÓCOLO



Fonte ==> Folha SP

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