Meu ex tem outra e sinto-me desrespeitada. Tenho razão? – 10/09/2025 – Amor Crônico

A imagem apresenta um coração partido, com duas metades que possuem olhos. De uma das metades, há uma lágrima escorrendo. O fundo da imagem é de cor escura, enquanto o coração e os olhos são representados em branco.

Por que acreditamos que é preciso ser fiel à dor e permanecer numa vida esvaziada de afeto, sentido e recomeços para honrar a profundidade de um amor vivido? Ainda operamos sob uma lógica perversa: somos chamados a reconstruir a vida e buscar novos encontros, mas, ao mesmo tempo, punidos e vigiados por fazê-lo. Como se uma espécie de moral religiosa ainda operasse em nós, mesmo nos mais ateus. Talvez esse “deus” seja o superego, com sua necessidade de vigiar e controlar não apenas o próprio gozo, mas também o gozo alheio.

Penso nas carpideiras e na tradição judaica de cobrir os espelhos após a morte. As primeiras, desde a Grécia antiga, eram contratadas para chorar nos velórios: a dor pública ajudava a alma do falecido a seguir e trazia conforto aos vivos. Sim, existe um conforto na dor compartilhada, no choro, na sensação de desamparo que transborda. É justamente essa atmosfera que parece ameaçada quando um ex assume uma nova relação. Como se ele tivesse “interrompido” o luto —quando, na verdade, pode apenas estar vivendo-o de outra forma.

Já o gesto de cobrir os espelhos, no judaísmo, convida os enlutados a voltarem-se para a memória do morto e não para a própria aparência, suspendendo o olhar sobre si para mergulhar na ausência. Mas por que, em termos psicanalíticos, descobrir os espelhos e voltar a olhar para si seria um desrespeito ao que se perdeu e não, justamente, uma forma de honrar a vida e o amor que nos constituem? Freud, em seu ensaio “Sobre a Transitoriedade”, nos convoca a encontrar beleza no efêmero, reconhecendo que os ciclos se honram no vivido, não no prolongamento eterno de lutos como provas de amor.

Trabalhei isso na minha própria análise. Minha mãe morreu quando eu tinha 5 anos, e a ausência dela sempre foi mais presente que sua presença real. Permanecer melancólica era, inconscientemente, seguir sendo “a filha órfã”, próxima da mãe que se foi. Só muito mais tarde pude ressignificar esse lugar: percebi que podia me relacionar com ela através daquilo que construo de amor na vida —porque parte dela está em mim— e não apenas através do que me falta. Essa mudança alterou profundamente meu percurso pessoal e afetivo.

Trago esse exemplo porque, nos lutos amorosos, também nos cristalizamos em papéis que duram décadas: “a traída” ou “o trocado pelo mais rico”. Como se fôssemos fiéis ao amor perdido apenas ao custo de nos fixarmos na dor: punindo a nós e ao outro. Quase sempre ele nasce de uma tentativa de reduzir o comportamento do outro a uma explicação simplista, que o transforma em vilão e nos fixa no papel de vítimas. Mas essa leitura nada tem a ver com o trabalho complexo do luto.

Freud já dizia que o luto é um trabalho: exige esforço, tempo, energia e paciência. É contraintuitivo pensar em “trabalho” quando nos sentimos frágeis, faltantes, à deriva. Mas é exatamente isso o que acontece: toda a libido antes investida no outro fica sem destino, e é essa ausência de destino que nos dá a sensação de que a vida perdeu sentido. Muitas vezes, diante desse vazio, desejamos —ainda que secretamente— que o ex-companheiro compartilhe conosco a mesma deriva emocional. Como se, mesmo em barcos separados, permanecêssemos cúmplices no mar dos escombros.

Mas é assim que você quer manter um laço com alguém que já foi seu cúmplice em tantos outros lugares, lindos e difíceis? Ou será que parte de você ainda espera que, nessa deriva, os barcos voltem a se encontrar num novo porto?

É duro admitir, mas muito do que nomeamos como “desrespeito” do outro está mais ligado à nossa dificuldade de lidar com a castração e com o ponto final. Castração e fim que já estavam dados na ruptura, mas que se tornam insuportavelmente concretos quando vemos o outro com alguém. Esse é um atalho perigoso para uma rua sem saída: vitimismo, vilanização, ressentimento —fantasias que alimentam certezas (“ele já me traía”, “nunca me amou”, “foi tudo mentira”). Por favor, não caia nessa armadilha. A nova relação do seu antigo amor não apaga a complexidade dele, nem o luto que ele também vive, e tampouco descarta o amor que vocês compartilharam.

O que dói, quando o outro assume uma nova relação, é a concretude da porta fechada que talvez você preferisse deixar entreaberta. Dói. Mas pode ser justamente essa tranca que liberta da tentação de permanecer em devaneios de retorno. Manter portas abertas é se prender a esperanças que congelam a vida: mensagens carinhosas, encontros como “amigos”… Tudo carregado de uma expectativa secreta de revival. Às vezes, o ponto final mais duro é também o único capaz de abrir espaço para outra história.

Para que sua nova história possa nascer, é preciso também desmontar o peso do julgamento social que simplifica dores complexas: vivemos cercados pela ideia de que “quem já está em outra” venceu, enquanto quem permanece só estaria ficando para trás. Como no carrinho do jogo da vida: avança casas quem põe um pino de companheiro ao lado. Mas não sabemos nada sobre essa nova relação: pode ser amor, carência, distração, tentativa. Isso já não te diz respeito. Insistir em entender “por que ela e não eu?” é manter-se presa na deriva do ressentimento e do amor misturado ao ódio. Mas o luto pede outra tarefa: aceitar a morte desse lugar sem transformar o outro em vilão. Essa nova pessoa não tem algo que você não tem. E você não vence no jogo da vida encontrando alguém só para provar que também “seguiu em frente”.

Todo luto amoroso é uma ferida narcísica: confronta a verdade de que não somos tudo para o outro. Essa é a castração. Não sou tudo. Me falta algo. Mas essa falta não me diminui ao contrário, pode me abrir para novas potências. Descubra seus espelhos não para buscar falhas, mas para reencontrar caminhos. Pergunte-se: o que faço com essa vida que agora se apresenta? Com o tempo livre, com o desconforto da ausência? Como transformar esse vazio em terreno fértil, e não em prova de que sempre fico para trás?

Acabou. E foi lindo. E foi triste. A dor faz companhia. O ressentimento também. A esperança de que ele volte, idem. Mas todas essas companhias aprisionam. É hora de encontrar outras narrativas, outras presenças, outros modos de se acompanhar.

E se você também tem um dilema ou uma dúvida sobre suas relações afetivas, me escreva no colunaamorcronico@amorespossiveis.love. Toda quarta-feira respondo a uma pergunta aqui.



Fonte ==> Folha SP

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *