Na Enel, um choque de incompetência

Enel energia elétrica são paulo

A passagem de um ciclone extratropical por São Paulo na quarta-feira, 10 de dezembro, com rajadas de ventos próximas a 100 km/h, durou cerca de 12 horas e derrubou árvores sobre a rede elétrica, deixando às escuras cerca de 2,2 milhões dos 7,5 milhões de imóveis que são cobertos pela concessionária Enel São Paulo na região metropolitana.

Passado o susto inicial, que gerou 1,8 mil chamadas ao Corpo de Bombeiros, os paulistanos voltaram a viver um pesadelo que vem se repetindo com irritante frequência nos últimos dois anos: a demora da Enel para restabelecer o fornecimento de energia.

Na tarde de sexta-feira, 12, quando nuvens começavam a se formar, com previsão de chegada de chuvas no final de semana que certamente levariam a novas quedas de árvores e interrupção de energia, cerca de 600 mil imóveis da maior cidade da América do Sul continuavam sem luz após 48 horas, deixando um prejuízo de R$ 1,5 bilhão apenas nos estabelecimentos comerciais, de acordo com a Federação do Comércio de São Paulo.

Em 2018, quando assumiu a concessão de energia elétrica da região metropolitana paulista, ao adquirir 73,38% das ações da AES Eletropaulo por R$ 5,55 bilhões, em leilão realizado na B3, a multinacional italiana Enel prometeu um choque de gestão. Sete anos depois, conseguiu subverter a ordem e instituir um autêntico choque de incompetência.

A rigor, a gestão da Enel em São Paulo pode ser dividida em duas partes. A primeira, entre 2018 e 2023, marcada por redução de investimentos, com corte de boa parte do quadro de funcionários da antiga operadora, deixando de cumprir as metas mínimas de qualidade da Aneel (agência reguladora do setor) em 2021 e 2022.

O drama é que, a partir de 2023, a empresa pagou o preço pela negligência dos anos anteriores ao sofrer com seguidos fenômenos climáticos extremos em passagem por São Paulo nesses últimos dois anos – tempestades intensas e o ciclone desta semana, que derrubam árvores e postes – que apenas reforçaram a má-fama, alimentada pelo acúmulo de multas que já somam mais de R$ 404 milhões na área sob sua concessão.

As previsões de “breve restabelecimento de energia”, que por sinal sempre demoraram mais do que o prometido, nos últimos dois anos ganharam um verniz de sinceridade: nos casos de interrupção após eventos climáticos mais extremos, diante das evidências, a Enel simplesmente passou a não dar prazo para o restabelecimento da energia elétrica.

Foi assim nos apagões seguidos em 2023, 2024 e agora – com os comunicados ganhando a justificativa de que “problemas complexos” impediam o restabelecimento de luz.

Dados apresentados pela Aneel mostram que o tempo médio de atendimento a ocorrências emergenciais da Enel em São Paulo aumentou de 9,13 horas em 2019 para 12,21 horas em 2024, um acréscimo de cerca de três horas. No ano passado, grande número de imóveis levou de cinco a sete dias para ter luz restabelecida após um temporal.

O problema é que há evidências de que a empresa negligenciou os seguidos eventos climáticos extremos mais recentes. De acordo com informação da CNN obtidas com a agência reguladora, a Enel São Paulo gastou 22,3% menos que o previsto em pessoal, materiais e serviços nos últimos 12 meses.

Segundo a Aneel, foram R$ 877 milhões a menos em pessoal e materiais desde 2024. A redução da despesa da Enel – de 22,3% – é muito maior que a média de 3,8% de todas as distribuidoras do Brasil.

Em outro quesito, de investimento – pelo qual a Aneel calcula quanto as distribuidoras investem e comparam com a depreciação da própria rede – o resultado é ainda mais pífio. Entre 51 empresas, a Enel ocupa a 48ª colocação, à frente de distribuidoras em Roraima, Amazonas e a Light, que está em recuperação judicial.

Joio do trigo

Há muito que a distribuidora entrou na mira da Aneel, da prefeitura da capital e do governo paulista. As seguidas multas não têm surtido efeito – a Enel tem recorrido à Justiça para escapar das sanções, pagando até agora pouco mais de R$ 29 milhões, menos de 10% do devido.

Mesmo com histórico de descumprimento de metas, a Enel pleiteou a renovação antecipada do contrato de concessão – o que gerou um alerta em vários órgãos públicos. Em outubro, a Justiça Federal suspendeu o processo administrativo de prorrogação antecipada da concessão, atendendo a pedido da Prefeitura de São Paulo.

Na semana passada, dias antes do vendaval na capital paulista chamar a atenção para a gestão da distribuidora, o Tribunal de Contas da União (TCU) concluiu que a Enel não comprovou ter corrigido, de forma definitiva, as falhas que levaram a uma sequência de grandes apagões e recomendou que a Aneel avalie a possibilidade de intervenção administrativa na concessionária e de declaração de caducidade na concessão.

Nivalde de Castro, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e coordenador geral do Grupo de Estudos do Setor Elétrico (Gesel) da UFRJ, porém, afirma que é preciso separar o joio do trigo no caso da Enel.

Segundo ele, São Paulo enfrentou de 2023 para cá, três eventos climáticos extremos de grande proporção – “tempestades perfeitas”, com rajadas de vento acima da média histórica e interação entre bolhas de calor urbanas e frentes frias do sul. Esses eventos provocam mudanças bruscas nas condições climáticas, afetando aeroportos, trânsito, redes de internet e, sobretudo, a rede elétrica.

“A infraestrutura atual não foi projetada para suportar tais extremos, resultando em apagões amplos e prolongados, como quando 25% dos consumidores da Enel ficaram sem energia”, diz Castro, observando que, mesmo se fizesse uma gestão impecável, a concessionária dificilmente conseguiria evitar os estragos verificados esta semana.

“Investimentos em distribuição são intensivos em capital e não conseguem ser ativados com antecedência curta”, adverte. “Alertas de horas ou meses não resolvem, pois a preparação exige obras estruturais e reguladas.”

Castro admite que o histórico da Enel até 2023 foi negativo em operação e manutenção, com redução de custos, venda de ativos e terceirização. Mesmo sancionando multas, o órgão regulador também tem limitações.

Isso porque, pelo contrato de concessão e regulação da Aneel, investimentos precisam ser autorizados e enquadrados como “prudentes” para compor tarifa e base de remuneração. “Como eventos extremos não eram previstos 30 anos atrás, quando a AES Eletropaulo ganhou a concessão, a distribuidora não tinha motivação regulatória para preparar a cidade contra ciclones e tempestades inéditas”, emenda.

Segundo ele, a partir de 2023/24, a Enel se comprometeu com plano de investimentos acima da média por dois anos, ampliando 2025-2026, embora a eficácia operacional não seja imediata pela complexidade da rede de São Paulo.

Diretrizes recentes do Ministério de Minas e Energia apontam aceitar investimentos prudentes para casos excepcionais na transição energética. Castro diz que a Aneel deve regular essas excepcionalidades, como no caso da Enel, abrindo espaço para soluções diferenciadas, como redes subterrâneas em clusters críticos, com tarifas específicas para regiões de alta densidade e importância econômica.

“A cidade não pode ser resolvida da noite para o dia; deve-se avançar por partes, priorizando áreas com maior impacto socioeconômico e histórico de falhas, conforme dados e supervisão regulatória”, aponta.

Intervenções políticas sugerindo suspensão da concessão, segundo ele, são ineficazes e contraproducentes, citando a falha da Prefeitura de São Paulo em podar árvores que ameaçam a rede elétrica.

“A resposta deve ser regulatória e técnica: se vier uma intervenção da Aneel, o que vamos fazer no próximo evento climático extremo em São Paulo?”, questiona. “A abordagem é de aprender para melhorar e firmar termos de compromisso condicionando eventual renovação.”

Depois de publicada a reportagem, a Enel mandou nota, na qual esclarece que sua área de concessão vem sendo acometida por vendavais cada vez mais frequentes, como em novembro de 2023 e outubro de 2024 e na quarta, 10, quando as rajadas ultrapassaram a marca dos 100 km/h.

“Para fazer frente a esse desafio, a distribuidora tem investido, principalmente, em automação, reforço de rede, digitalização e expansão do sistema de distribuição”, afirma a Enel, acrescentando que mobilizou cerca de 1.800 equipes em campo por dia e segue trabalhando para restabelecer o serviço para todos os clientes ainda afetados por esse ciclone extratropical até sábado, 13.

A empresa contesta os dados apresentados pela Aneel, afirmando que, de 2025 a 2027, a companhia está realizando um investimento recorde de R$ 10,4 bilhões. “No último verão, de novembro/24 a março/25, o tempo médio de atendimento reduziu em 50%, em relação ao ano anterior”, prossegue a nota.

Em relação à auditoria técnica do TCU, recomendando que a Aneel avaliasse a possibilidade de intervenção federal na Enel, a empresa assegura que tem em cumprido integralmente suas obrigações contratuais e regulatórias, assim como o Plano de Recuperação apresentado em 2024 à Aneel.

“Esse plano estabeleceu iniciativas concretas e mensuráveis, que foram integralmente atendidas, com objetivo de buscar melhorias em três frentes: redução do tempo de atendimento a ocorrências emergenciais; redução de interrupções de longa duração (acima de 24h) e mobilização rápida de equipes em contingências de nível extremo”, finaliza  a nota da Enel.



Fonte ==> NEOFEED

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