Não aceito que ele comente fotos de mulheres sensuais – 17/09/2025 – Amor Crônico

Marketing digital - Entre o like e a fraude

O relato da leitora expõe um dos terrenos mais delicados do amor nos tempos de likes: onde terminam a privacidade e o respeito e onde começam os contornos da traição? O “peguei” soa como flagrante, mas revela algo mais incômodo: o gesto, cada vez mais comum, de controlar e invadir a intimidade do outro em busca de provas que, em vez de apaziguar, apenas realimentam o circuito pulsional do ciúme, da desconfiança e da sensação de insuficiência.

E a leitora não está só. Uma pesquisa da Kaspersky Lab já mostrou que 49% dos brasileiros admitem espionar o celular do parceiro —e é fácil supor que a porcentagem real seja ainda maior. Não à toa, 1 em cada 3 casais discute porque encontrou algo que o outro preferia manter escondido.

O fato é que, quando o desejo do outro se inscreve em telas, o ciúme se arma de juízos e proibições próprias, tentando aprisionar aquilo que jamais lhe pertence. Pelo moralismo, buscamos aplacar a angústia terceirizando a culpa: “ele está errado, me trai, flerta com alguém vulgar” e pronto, temos uma explicação pronta para o desconforto que nos atinge. Mesmo mulheres atravessadas pelo feminismo e pela sororidade confessam o incômodo diante de imagens de outras que performam um “soft porn” nas redes.

Para sustentar essa dor, o lado racional se apressa em descredibilizar o desejo do parceiro: “se conversa com esse tipo de mulher segue objetificando as mulheres e resumindo-as a um corpo… é tão machista e raso quanto os caras que critica”; “se busca esse tipo de conversa é porque não tem valores, é um mentiroso narcisista“; “se busca esse tipo de conversa, revela a falta de caráter”. Em última instância, não é o desejo do outro que julgamos, é a ameaça que ele impõe ao nosso lugar narcísico. Porque o que fere não é que o outro olhe para fora, mas que esse olhar relativize o nosso dentro —não sou mais a única, não sou mais o centro; me percebo frágil, comparada, deslocada, relativizada.

Talvez nossos tempos pareçam difíceis para o amor não porque as pessoas estão menos comprometidas com os vínculos, mas porque o aumento das ferramentas de controle revela na mesma potência a impotência de nosso controle sobre o desejo alheio. O “bug” em nosso sistema emocional se dá quando seguimos perseguindo o ideal de uma felicidade a dois, herdeira dos contos de fadas, de Hollywood e até de “O Banquete” de Platão. Um amor em fusão plena, que se bastaria em gozo e completude. Mas o desejo não se deixa domesticar. Ele se escreve em cenas triangulares, convoca sempre um terceiro, por mais que tentemos apagá-lo. Diante disso, nos angustiamos. Vasculhamos. Culpamos. Discutimos. E juramos que algo deu errado. Mas será? A psicanálise nos lembra: não há amor sem triangulação, não há desejo que se sustente fora da falta, não há gozo que se dê sem a sombra de um outro. A triangulação é estrutura, e não acidente do desejo.

Onde há dois, sempre há três. Freud já nos mostrou, nos “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade”, que o desejo nasce em cena triangular: a criança, a mãe, o pai. O complexo de Édipo funda a ideia de que o desejo só se organiza em relação à presença de um terceiro que interditará, mediará e também tornará desejável. Lacan segue o mesmo raciocínio e afirma que o desejo do sujeito só encontra sua consistência quando inscrito numa cena, e essa cena, sempre, inclui um terceiro. É o que se revela tanto no ciúme quanto na excitação: não se trata apenas de perder ou possuir o objeto amado, mas de imaginar a cena em que ele é desejado por outro ou de fantasiar ser visto e comparado. Até a pergunta íntima do casal cúmplice “o que o outro vê em mim?” supõe uma cena em que há outro olhar em jogo, como se o seu amor fosse um terceiro.

O terceiro, portanto, não é um “intruso eventual”, ele é a condição que dá consistência ao desejo. E talvez seja isso que a leitora flagra —não um deslize moral do parceiro, mas a irrupção desse terceiro inevitável, que desloca e angustia. A questão é: como ela lida com sua relação com seus terceiros fantasiados? Começamos aqui a complexificar as ações e motivações da leitora: estaria ela buscando preservar a “moral e os bons costumes” de sua relação a dois ou buscando um terceiro para fantasiar seu próprio desejo? Por que não pensar em possibilidades de lidar com esta fantasia da falta e com a presença de possíveis outros (sendo nós mesmos outros possíveis dentro de nossas fantasias e fetiches conjugais) como parte do jogo do casal e não como ameaça ao tal amor imaculado?

Entender isso não significa normalizar traições, mas reconhecer a fantasia como parte constitutiva do amor. Se quisermos relações mais possíveis —menos vigilantes e mais permeáveis e pulsantes— precisamos acolher a triangulação como suporte e não como ameaça.

É claro que incomoda pensar que o parceiro deseja outra pessoa. Mas se não reconhecermos que todo desejo carrega algo de amoral e de imoral, viveremos sempre em choque diante do desejo alheio. O problema não está no olhar que ele lança, mas na nossa recusa em admitir que também olhamos e que fantasiamos coisas que, se expostas à luz da moral, poderiam nos parecer igualmente inaceitáveis.

Dentro desse campo da fantasia é de extrema importância que nos autorizemos a desmoralizar o tesão. Afinal, por que mesmo o sexo teria que ser espaço de discurso moral e não de transgressão, experimentação, livre sentir? A busca pelo excesso de coerência tem achatado humanos complexos. O desejo pelo soft porn não faz de seu parceiro alguém menos engajado com a desobjetificação da mulher, assim como seu eventual prazer em práticas de BDSM não te faz menos feminista.

Essa tentativa de higienizar e politizar o desejo talvez diga mais sobre nosso ciúme projetivo, este que acusa no outro o que teme e interdita em si. Provavelmente a “não aceitação” confessada pela leitora diz também sobre a própria dificuldade de autorizar suas fantasias “politicamente incorretas” ou seus flertes virtuais que podem ser apenas parte de uma cena de fantasia.

Enquanto perseguirmos um amor “feliz para sempre”, transparente, harmonioso, sem fendas ou sobressaltos, corremos o risco de transformar o castelo de contos de fadas numa torre de vigilância. E nessa torre, mais do que protegidos, estaremos aprisionados: condenados à angústia, à insatisfação, à eterna sensação de que algo escapa —porque, de fato, sempre escapa.

Fantasiar não é trair; é reconhecer que nem tudo precisa ser dito, mostrado ou controlado. Em tempos em que a transparência virou fetiche, talvez o gesto mais amoroso seja justamente permitir ao outro conservar zonas de sombra, territórios de opacidade onde o desejo possa respirar. Porque é nesse espaço de sombra que o tesão se reinventa. E, convenhamos, até o soft porn pode nos ensinar algo: o erotismo não se alimenta da moralidade, mas do excesso, da cena montada, daquilo que não cabe na luz crua da transparência. Talvez, no fim, o amor possível não seja o que expõe tudo, mas o que suporta que algo permaneça escondido.

E se você também tem um dilema ou uma dúvida sobre suas relações afetivas, me escreva no colunaamorcronico@amorespossiveis.love. Toda quarta-feira respondo a uma pergunta aqui.



Fonte ==> Folha SP

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