O botijão da discórdia: mudanças de regras colocam setor de gás e ANP em rota de colisão

O botijão da discórdia: mudanças de regras colocam setor de gás e ANP em rota de colisão

O mercado de gás liquefeito de petróleo (GLP) está perto de explodir. De um lado, a Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) está propondo mudanças das regras do setor, alegando que trará mais competição. De outro, as empresas da área acreditam que com as novas normas haverá insegurança jurídica e serão freados os investimentos necessários para a expansão do acesso ao gás de cozinha.

No meio deste embate está o governo federal, que prepara os últimos detalhes para o lançamento do programa Gás para Todos (que estava marcado para esta terça-feira, 5 de agosto, mas foi adiado), cujo objetivo é justamente aumentar o acesso ao gás de cozinha para as pessoas de baixa renda.

A discórdia entre ANP e empresas da área se dá pelas regras presentes na Auditoria de Impacto Regulatório (AIR), aprovada em 10 de julho e em vias de elaboração da minuta da nova resolução.

De acordo com essas regras, está permitida a autorização para o envase fracionado do botijão e o fim da exclusividade dos botijões pelas donas desses equipamentos, liberando que qualquer empresa possa ficar com esses recipientes, abastecer e comercializar o GLP, colocando em risco a qualidade dos materiais.

Ainda há algumas etapas para que as medidas sejam efetivamente colocadas em prática, como a realização de audiências públicas. A estimativa é que a nova resolução entre em vigor em abril de 2026. Com poder decisório, não é necessária autorização presidencial nem aprovação do Congresso Nacional para a implementação das alterações.

A ANP nega, no entanto, que a decisão sobre os termos do novo texto já tenha sido tomada. “Com a aprovação desse relatório, que passou por consulta prévia junto ao mercado e à sociedade, será elaborada agora a minuta de nova resolução, que poderá ou não contemplar as propostas que constam do relatório”, diz a autarquia ao NeoFeed.

O problema é que essas mudanças podem gerar, segundo o próprio setor, riscos quanto à segurança dos recipientes e uma possível abertura de portas para que o crime organizado possa se instalar no segmento, já que a fiscalização ficaria muito mais frágil.

“Um grande problema é que a medida permite que qualquer pessoa possa envasar o botijão, e isso acaba com a marca. Cria um botijão pirata, em que ninguém é dono”, diz Pedro Turqueto, CEO da Copa Energia, em entrevista ao NeoFeed. “Eles querem colocar um chip mágico e fiscalizar 131 milhões de botijões.”

A estimativa das empresas é que, para aumentar a distribuição de GLP de 5,4 milhões de famílias, que atualmente recebem subsídio do auxílio-gás, para 16,6 milhões de famílias até 2027, como prevê o programa Gás para Todos, serão necessários investimentos que devem alcançar R$ 1,5 bilhão, a maior parte justamente na compra dos botijões.

A discussão, na prática, envolve um mercado consolidado de R$ 60 bilhões, sendo R$ 44 bilhões para as companhias distribuidoras e R$ 16 bilhões para as empresas que revendem os botijões, segundo dados do Sindicato Nacional das Empresas Distribuidoras de Gás Liquefeito de Petróleo (Sindigás). São 19 distribuidoras e cerca de 59 mil revendedoras de botijão no País (42 mil vinculadas às distribuidoras e 17 mil independentes).

As empresas vendem, mensalmente, 33 milhões de botijões de 13 quilos. Em circulação, são 131,4 milhões de vasilhames do tipo. Com a nova demanda, a perspectiva é de que o segmento precisaria injetar, em dois anos, pelo menos 5,3 milhões de novos botijões no mercado.

Segundo dados da Petrobras, única responsável pelo fornecimento do produto às distribuidoras no Brasil, o preço médio do botijão de GLP é de R$ 107,89. Mas o produto pode custar até R$ 140 nas revendas, sem levar em conta o vasilhame, dependendo da localidade ou da marca comprada.

Um dos impasses nesse debate está na fiscalização desses botijões ‘sem dono’ e, na prática, quem passaria a ter a responsabilidade civil e criminal em caso de algum acidente envolvendo a manipulação e o abastecimento do recipiente.

“A ANP alega que vai rastrear esses botijões, que em tese seriam usados por todos, por meio de uma tecnologia eletrônica de chip, ou outra metodologia que eles desconhecem e nós desconhecemos”, diz Sérgio Bandeira de Mello, presidente do Sindigás, ao NeoFeed.

“Fico me perguntando como eles vão autorizar algo que é desconhecido. Como eles fazem uma análise de impacto regulatório sobre algo cujos riscos e custos desconhecem?”, indaga o executivo da entidade.

Esse é um mercado em que quatro empresas detêm 89% do mercado. A líder é a Copa Energia, criada em 2020, a partir da fusão e aquisição da Liquigás pela Copagaz, que lidera o mercado de GLP no País, com 23,81% de participação e tem receita líquida de R$ 11,7 bilhões. Na segunda posição está a Ultragaz, com 22,51%, seguida por Nacional Gás (21,55%) e Supergasbras (21,02%).

Segundo a ANP, este tipo de envase, feito por outra empresa, já existe no País. “Todos os distribuidores de GLP com maior participação de mercado já envasam botijões que não estampam a sua marca.”

O presidente do Sindigás nega e diz que a ANP tenta confundir a população, ao misturar o assunto com a prestação de serviços entre empresas distribuidoras, em que, por meio de contrato, uma pode abastecer o botijão da concorrente, mas sem qualquer responsabilidade quanto à comercialização. Na prática, nenhuma empresa vende botijão com marca de outra empresa.

Para o CEO da Copa Energia, outro problema grave da resolução é permitir o fracionamento do abastecimento do botijão. “A válvula do botijão é feita para preenchimento em zonas industriais. O botijão brasileiro não é feito para enchimento manual, precário. E ainda não teria mínimo para abastecimento. Imagina a quantidade de acidentes que isso poderia causar”, afirma Turqueto.

Relatório mostra problemas

Em um extenso relatório publicado recentemente, o BTG Pactual aponta os riscos das mudanças regulatórias propostas e que, se avançarem, podem desestruturar o setor, além de colocar em risco uma das principais vitrines do terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva.

“Caso a reforma avance conforme desenhada atualmente, acreditamos que certas mudanças podem enfraquecer o ambiente de investimentos necessário para a execução bem-sucedida da iniciativa Gás para Todos”, diz o documento, assinado pelos analistas Luiz Carvalho e Gustavo Cunha.

A autarquia federal alega que a nova resolução vai reduzir o custo de produção e promover a abertura para novos players no setor. “As mudanças indicadas reduzem as exigências regulatórias e levam a menores custos de entrada e maiores possibilidades de competição direta entre agentes econômicos, inclusive pela liberação de novos modelos de negócio.”

Mas, segundo o BTG, não há garantias de que isso aconteça. “A medida poderia desestabilizar o setor, incentivar a informalidade, reduzir os incentivos ao investimento e comprometer a segurança pública, sem gerar reduções significativas de preço ou melhorias na resiliência do fornecimento.”

Para Tabajara Bertelli, presidente da Ultragaz, empresa que integra o grupo Ultra, a chegada do programa Gás para Todos é positiva, já que tem potencial para ampliar o acesso à fonte de energia. Mas as alterações previstas pela ANP vão na contramão desse avanço.

“Qualquer mudança nesse sistema precisa preservar a rastreabilidade, a responsabilidade das empresas e a proteção do consumidor. Um retrocesso nessa estrutura pode abrir espaço para atuação irregular, afetar a segurança da sociedade e colocar em risco a qualidade de um serviço essencial para mais de 90% dos lares brasileiros”, diz o executivo.

Nesse sentido, Bertelli entende que ainda deve haver espaço para discussão, antes de qualquer resolução definitiva a ser adotada por parte da agência reguladora do setor no País.

“A aprovação da Análise de Impacto Regulatório marca uma nova etapa no debate, mas ainda há pontos que nos preocupam. Propostas como o envase fracionado e o fim do modelo de botijão vinculado à marca representam uma ruptura com o modelo atual, que alia competição com elevados padrões de segurança”, afirma o presidente da Ultragaz.

A ANP usa como argumento, no documento aprovado, medidas semelhantes adotadas em países como o México. Só que o mercado mexicano é de 20 milhões de botijões, ou seja, um sexto do tamanho do brasileiro.

No relatório produzido pelo BTG, os analistas apontam os problemas legais no país da América Central, principalmente no que diz respeito à criminalidade. “Em 2024, a cada nove horas, um duto de GLP foi perfurado ilegalmente, com mais de 600 mil toneladas de GLP roubadas. Além disso, o México possui diversos pontos de enchimento não autorizados”, diz o banco.

“A rejeição das distribuidoras que já estão estabelecidas no mercado é natural e esperada, ainda mais em um produto com altas margens de comercialização”, afirma a ANP.

O presidente do Sindigás acredita que, caso todas as etapas sejam vencidas sem a revisão da proposta da ANP e sem um diálogo mais próximo com o setor produtivo, é possível que a discussão chegue à Justiça.

“A gente espera, sinceramente, não precisar judicializar a questão, porque o setor está contribuindo em todas as fases do debate com um material de alta qualidade, para que a ANP possa revisitar suas ideias e, com isso, encontrar o melhor projeto”, diz Bandeira de Mello.

“A ANP sequer ouviu nossas argumentações. O difícil é que ela atua, ao mesmo tempo, como uma espécie de Ministério Público e juiz. Se isso for estabelecido, certamente vamos rever nosso volume de investimentos”, afirma o presidente da Copa Energia.



Fonte ==> NEOFEED

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